Excepcionalmente neste ano, o 38º Panorama da Arte Brasileira, realizado pelo MAM, é apresentada no MAC USP, em São Paulo. Com curadoria de Germano Dushá, Thiago de Paula e Ariana Nuala, e sob o tema “1000 graus”, a mostra aborda as condições climáticas e metafísicas intensas que conduzem ao calor extremo – uma temperatura de transmutar tudo ao seu redor.
Com 34 artistas de 16 estados do Brasil, a exposição conta com obras que colocam em pauta a noção do calor-limite e suas diversas manifestações. As produções, que atravessam múltiplos suportes e linguagens, trazem à tona desde questões ambientais e sociais até processos de metamorfose interior, buscando compreender como o calor é capaz de moldar, desafiar e transformar o mundo – um ponto de inflexão tanto físico quanto simbólico.
Compreendendo a relevância histórica do Panorama da Arte Brasileira – criado em 1969 para mapear e lançar luz sobre a produção de arte brasileira relevante na contemporaneidade – o AQA selecionou nove artistas fora do convencional eixo Rio-São Paulo, com produções potentes, que vale a pena você conhecer mais.
Marlene Almeida
Bananeiras, PB, 1942
Há mais de cinquenta anos, Marlene percorre encostas e vales de paisagens da Paraíba e outras regiões, recolhendo fragmentos que se tornam parte de um arquivo vivo, onde cada rocha e cor aponta para uma narrativa do passado. Seu ateliê é um espaço de transformação, onde pedras viram pó e argilas se tornam tinta.
A cada viagem, a artista une minerais e memórias, encontrando texturas, tons e vibrações que dão início à sua criação. A prática de Marlene está enraizada no contato direto com a terra: as cores das falésias e planícies se tornam matéria, e os cheiros do solo tornam-se inspiração.
Para Marlene, criar é também um processo de escuta. Ela ouve o que o solo lhe diz, o que as rochas mostram em seu silêncio. “Derrame” (2024), sua instalação mais recente e que integra a mostra, é um exemplo disso. Feita com tecidos tingidos por pigmentos naturais extraídos de basaltos, a obra traz consigo a densidade das paisagens de onde vieram. O tecido, serpenteando o espaço, recorda a memória das rochas que um dia estiveram em movimento, onde a artista busca trazer uma reflexão sobre a contínua transformação do planeta.
Adriano Amaral
Ribeirão Preto, SP, 1982
Adriano Amaral articula um vocabulário poético que opera entre o orgânico e o tecnológico, o ancestral e o futurista. Suas obras, compostas por resíduos industriais, elementos vegetais, minerais e animais, são combinações inesperadas que parecem estar em constante mutação. Ao dissolver as distinções entre sólido, líquido e gasoso, o artista cria objetos que oscilam entre o emergir e o decompor, remetendo a sistemas autônomos com regras e temporalidades próprias.
No 38º Panorama da Arte Brasileira, Adriano apresenta a instalação “Cabeça-d’água” (2024), desenvolvida especialmente para o MAC USP. Com uma estrutura octogonal arquitetônica, a obra abriga a série “Pinturas protéticas” – imagens corriqueiras coletadas na internet, recortadas em silicone e transformadas em hologramas táteis.
A instalação também inclui esculturas feitas de chuteiras fundidas e patas de aves, configurando formas que lembram artefatos ou relíquias de um contexto desconhecido. No centro, um tanque com líquido viscoso banha crânios de hominídeos continuamente, sugerindo ciclos de transformação e renovação.
Antonio Tarsis
Salvador, BA, 1995
Antonio Tarsis cria instalações a partir das suas andanças e vivências pelas ruas do centro histórico de Salvador. Como um bom andarilho, sempre atentou-se para objetos do cotidiano que encontrava ao longo dessas travessias – como a presença constante das caixas de fósforos descartadas – e começou a colecioná-los tornando-os mais tarde seus “achados-amuletos”.
O artista participou da exposição Aberto 2024, em São Paulo, onde apresentou um trabalho utilizando muitas dessas caixinhas de fósforo.
Com formação autônoma, Tarsis se interessa por texturas, variações cromáticas e geometria experimental para criar arranjos a partir de resíduos coletados.
Em seus trabalhos mais recentes incorpora o uso da pólvora, do papel paraná, da madeira e, principalmente do carvão, utilizado em “Ascendendo o silêncio” (2024), instalação comissionada para a mostra. Nessa obra o gotejamento de água em um metal superaquecido faz a sonoridade da queima despertar no público a presença do vapor, quase como em um ritual alquímico.
Zahỳ Tentehar
Colônia, Reserva Indígena Cana Brava, MA, 1989
Ecos de ancestralidade e modernidade estão presentes nas criações de Zahỳ Tentehar, moldando um território onde passado e futuro coexistem. O teatro e o audiovisual se tornam caminhos de resistência e renovação. Seu trabalho utiliza o corpo como matéria-prima, entendendo a performance e a dramaturgia como tecnologias indígenas, ferramentas para reinterpretar a vida e recontar suas narrativas.
No 38º Panorama, Zahỳ apresenta a videoperformance “Máquina ancestral: Ureipy” (2023) – anteriormente exibida no Canal Projects, em Nova York, como parte da mostra “Back to Earth: Contested Histories of Outer Space Travel”–, uma obra que aborda as interseções entre ancestralidade e tecnologia.
A instalação é composta por dois canais de vídeo, nos quais uma figura robótica solitária vive em duas realidades distintas: uma ambientada em ruínas ancestrais (vínculo com o passado) e outra em um laboratório tecnocrata (ambiente tecnológico moderno). Esses cenários simbolizam as diferentes dimensões que coexistem na experiência humana, onde a figura robótica passa por uma série de atos em busca de compreender sua natureza e sua conexão com esses dois mundos.
Melissa de Oliveira
Rio de Janeiro, RJ, 2000
Cortes precisos, motos no grau, multidão na garupa. O trabalho de Melissa de Oliveira parte da fotografia, mas se expande para objetos e instalações, sempre mantendo a imagem como núcleo. Seus principais assuntos são as culturas de rua das periferias, em suas manifestações mais vigorosas, dinâmicas e criativas.
Desde 2019, a artista documenta o cotidiano do Morro do Dendê, na zona norte do Rio de Janeiro, onde nasceu e cresceu. Suas fotografias não querem reforçar estigmas de violência e pobreza, mas sim afirmar a autoestima e a criatividade dos jovens dali. Ela documenta a estética, o lazer e o orgulho, mostrando os momentos de diversão, afeto e resistência que compõem a vida no Dendê.
No 38º Panorama, Melissa apresenta duas obras ligadas ao universo do “grau”, prática de empinar motos em manobras exibicionistas. As imagens, feitas com conhecidos e familiares, retratam cenas do dia a dia dessa cultura, que transformam as ruas em palcos para habilidades acrobáticas, onde laços comunitários e a identidade cultural local são fortalecidos.
Mestre Nado
Olinda, PE, 1945
Mestre Nado é um escultor-instrumentista que apresenta peças de cerâmica com variações de forma e sonoridade. Em sua infância na Zona da Mata pernambucana, precisou lançar mão da criatividade para produzir brinquedos com o vasto material encontrado na natureza como os de caules de plantas para fazer apitos e a argila extraída das margens dos rios.
Da sua relação íntima com o barro, o artista aprende a técnica da olaria em sua juventude e produz filtros e quartinhas com o material, que posteriormente serviram de moldes para a criação de instrumentos musicais originais de cerâmica.
Com criações que reverberam um som-caminhante pelas formas do barro e que lembram artefatos pré-colombiano ou futurista, mestre Nado apresenta no 38º Panorama, três esculturas inéditas, como torres de sopro, com estruturas grandes e complexas, que convidam o público a refletir sobre o desempenho dos instrumentos e quais seriam os sons produzidos pelos orifícios.
Dona Romana
Natividade, TO, 1942
Mestra de um saber espiritual, Dona Romana apresenta criações que atraem o público pela união entre arte e energia transcendental. Na década de 1990, após um chamado espiritual, a artista destaca que iniciou suas produções utilizando somente pedras cimentadas, posteriormente inserindo mosaico de pedrinhas e aprimorando para desenhos em papéis e pinturas nas paredes.
Idealizadora do espaço conhecido como Centro Bom Jesus de Nazaré (TO), a mestra do saber cria peças e instalações apenas em locais específicos e que não podem ser transportados, pois para a artista tais peças foram construídas como portais de conectividades entre o mundo material e imaterial, e onde forças invisíveis atuam e se materializam.
Para respeitar os lugares sagrados das obras criadas por Dona Romana a mostra traz uma fotografia de uma das suas peças e a localizada em grandioso painel no espaço, expandindo sua presença por meio de registros documentais – áudios dos seus testemunhos, fotos inéditas e transcrições das suas falas – instalando as energias espirituais como movência do espaço, o próprio movimento do 38º Panorama da Arte Brasileira.
Marcus Deusdedit
Belo Horizonte, MG, 1997
Com a justaposição de diferentes materiais e recontextualização de símbolos, Marcus questiona como imagens e objetos moldam percepções e afirmam ou apagam identidades.
Utilizando o remix como ferramenta criativa, Marcus combina informações de diversas fontes, incluindo arquivos pessoais, elementos do consumo de massa e imagens da internet, para trazer novas perspectivas ao design e à arquitetura, especialmente a partir de contextos periféricos. Seu trabalho aborda a relação entre raça e os limites impostos pelas hierarquias culturais por meio de colagens, objetos, vídeos e instalações multimídias.
No 38º Panorama, Marcus apresenta uma obra comissionada que expande sua pesquisa sobre edição de objetos, transformando um equipamento de exercício físico em um comentário sobre questões sociais e políticas. A estação de musculação modificada se conecta a um vídeo que mostra uma figura humana digital e idealizada, fazendo um paralelo entre a arquitetura brutalista e o esforço físico, e questionando a performatividade esperada do corpo negro. Assim, Marcus evidencia a tensão entre o esforço físico e o direito ao pensamento abstrato, trazendo à tona as dinâmicas de poder que atravessam o corpo e a sociedade.
Paulo Pires
Poxoréu, MT, 1972
Os processos artísticos de Paulo Pires capturam o sensível e o intuitivo que surgem da possível delicadeza de uma força bruta. Para o artista, escutar o “grito” da pedra ao longo de seu processo criativo traz conexões entre ele e o material, aguçando sua criatividade e sensibilidade, que se traduzem em esculturas e que apresentam ao público fluxos de emoções, sentimentos, afetos e gestos humanos, como abraços, danças e interações.
Na mostra, ele apresenta quatro esculturas que contestam a densidade da matéria, expressando a conexão entre corpos e exalando a noção de calor-limite proposto pelo tema curatorial do 38º Panorama: “Mil Graus”.