Pontos de arte e resistência negra em Salvador

Três espaços de resistência negra, que por meio da cultura, preservam a memória dos saberes de um povo

por Emilly Chaves
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Foto: Alex Carvalho / Divulgação / Via: faroldabahia.com
Carnaval de Salvador, 2024 / Foto: Alex Carvalho / Divulgação

Como (re)construir a memória negra em territórios afro-diaspóricos? Os espaços de arte e resistência desempenham um papel fundamental na preservação dos saberes da comunidade negra. No entanto, narrar histórias que foram invisibilizadas, a partir das narrativas de grupos considerados minoritários e marginalizados, exige, sem dúvida, a implementação de políticas públicas que fortaleçam, valorizem e salvaguardem a memória dessa comunidade.

Se considerarmos os estudos sobre relações raciais e os esforços dos movimentos negros brasileiros para a valorização das narrativas imagéticas relacionadas às histórias e culturas das populações afro-brasileiras e indígenas, os avanços obtidos com a implementação da Lei 10.639/03 e da Lei 11.645/07 são significativos, mas ainda insuficientes. Essas leis alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), tornando obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, bem como a História e Cultura Indígena nas escolas. Essa legislação representa um passo importante na luta por reconhecimento e reparação histórica, mas os desafios permanecem. É urgente que estabeleçamos ações colaborativas entre o poder público e os pontos de resistência negra para superar o apagamento histórico e as diversas iniciativas que compõem as políticas de esquecimento. 

Como exemplo de uma das ações que envolvem as políticas de memória, no final de 2023,  um decreto presidencial determinou que o dia 20 de novembro, “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”, seja celebrado como feriado em território nacional pela primeira vez em 2024. Instituido inicialmente para homenagear a memória de Zumbi dos Palmares, um líder quilombola que lutou contra escravidão no Brasil e tornou-se símbolo de liberdade como  organizador de Palmares, um herói nacional da maior importância para a comunidade negra. Apesar da sua relevância, sua história ainda é frequentemente relegada aos anais da historiografia nacional, com pequenas alusões e referências à sua vida e ao Quilombo. A celebração nacional do dia 20 de novembro não apenas reconhece o legado de Zumbi, mas também busca promover uma maior conscientização sobre a luta contínua por igualdade e justiça social no Brasil do povo negro.

Mas qual será o verdadeiro impacto ao transformar o dia 20 de novembro em um feriado nacional?

O feriado é um convite à reflexão, ao reconhecimento e à lembrança. Nesse contexto, ao desafiar as narrativas históricas hegemônicas que minimizam as ações e contribuições de Zumbi, promove-se uma valorização da história e memória negra, reconhecendo-as como patrimônio cultural. Essa valorização incentiva o debate e a educação, além de fortalecer a identidade e o orgulho negro. Como afirmou Beatriz Nascimento: “A história da raça negra ainda está por fazer, dentro de uma história do Brasil ainda a ser feita.” Nessa citação, a historiadora e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres, ressalta a  necessidade de se construir uma narrativa mais inclusiva e representativa, que reconheça as lutas e conquistas da população negra ao longo da história do país.

Pontos de resistência negra: espaços repletos de arte, memória e política

Resistência: substantivo feminino
1. ato ou efeito de resistir;
2.propriedade de um corpo que reage contra a ação de outro corpo;
3. ação ou efeito de resistir, de não ceder nem sucumbir.

Os espaços de resistência negra, sejam eles materiais ou imateriais, devem ser considerados “pontos de resistência” por preservarem as memórias e os saberes de um povo em prol de sua liberdade e sobrevivência, por meio da cultura e da arte. A preservação da memória negra pode e deve ser vista como uma força motriz, um espaço de resistência estético-política que visa afirmar identidades negras e confrontar a história hegemônica.

No contexto da comunidade negra, a arte e a cultura são meios de expressão e manifestação que preservam histórias, tradições e saberes essenciais para a sobrevivência da identidade afro-diaspórica, mesmo diante de contextos macro-políticos perversos e opressores. Essas práticas culturais são ferramentas ancestrais de resistência, transmitidas de gerações em gerações.

É no fortalecimento da identidade e na formação de uma consciência coletiva que esses pontos de resistência atuam contra o apagamento histórico. Celebrar nossas raízes e o pertencimento africano promove a valorização da autoestima do povo negro e propõe (re)estabelecer uma conexão brutalmente atacada ao longo da travessia do Atlântico Negro.

É importante destacar que não existe nada inocente, por acaso, ingênuo ou natural quando se trata de memória e história. Como afirma Ana Flávia Magalhães, historiadora e Diretora-Geral do Arquivo Nacional, “as narrativas históricas com as quais temos contato ao longo da vida orientam a maneira como definimos quem somos nós.” Nessa reflexão, Ana Flávia nos lembra que somos moldados pelas histórias que ouvimos e contamos. As narrativas históricas desempenham um papel fundamental na formação de nossa identidade individual e coletiva, influenciando nossas percepções sobre nós mesmos e sobre o mundo ao nosso redor. A arte negra atua como uma ponte para a mobilização social e política, funcionando como um poderoso instrumento de transformação social. Suas criações artísticas subvertem as lógicas da opressão e frequentemente se tornam ferramentas de denúncia, gerando mudanças concretas ao realocar questões raciais no centro do debate público. Dessa forma, a arte negra não apenas estimula a reflexão crítica, mas também incentiva a formulação de políticas de memória e reparação histórica.

Salvador: o berço dos pontos de resistência negra

As histórias das lutas dos movimento negros pela memória negra no Brasil, desde o período colonial até os dias atuais, são complexas e devem ser estudadas com maior profundidade. 

Sendo a cidade do Salvador (BA) considerada a mais negra do mundo fora da África, com mais de 80% da população autodeclarada afrodescendente (pretos e pardos), o AQA selecionou três “pontos de resistência negra” nessa cidade. O bloco afro “Ilê Aiyê”, o “Zumví Arquivo Afro Fotográfico” e os “Espaços Sagrados” são apenas alguns exemplos de pontos de resistência que preservam um patrimônio civilizatório, um jeito, um modo de viver de um povo.

Confira a seguir nossa os destaques da nossa seleção:

Ilê Aiyê

Ilê Aiyê, Carnaval de Salvador, 2024
Ilê Aiyê, Carnaval de Salvador, 2024

Com seus tecidos que contam histórias de lutas e resistência do povo negro, as narrativas visuais do Ilê Ayiê, primeiro bloco afro de Carnaval, criado em 1974, demarcam movimentos estéticos-políticos e sociais primordiais para negritude. Com projetos educacionais voltados para a comunidade o Ilê Aiyê promove, desde da sua fundação, o encontro com histórias e práticas de ensino afro centradas.

Zumví Arquivo Afro Fotográfico

Manifestação para aprovação da política de cotas na Universidade Federal da Bahia, 2005

O Zumví Arquivo Afro Fotográfico, hoje, reúne imagens que se tornaram fundamentais para a compreensão da experiência negra contemporânea em Salvador e na diáspora, como as fotos da luta política dos movimentos negros, por diferentes pautas, e as fotos dos blocos afro e das práticas religiosas, sobretudo em espaços públicos. Pela diversidade de olhares e pela densidade histórica dos mais de 40 anos documentados pelos fotógrafos, o arquivo atesta a resistência negra contra o esquecimento e por sua própria autodeterminação.

Espaços Sagrados

Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos

Faixada Igreja Nossa Senhora do Rosário do Pretos, 2023

O Ilé Iyá Omi Asé Iyamasé, Terreiro do Gantois

O Ilé Iyá Omi Asé Iyamasé, Terreiro do Gantois, 2017

A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos – uma igreja católica construída no século XVIII, localizada Centro Histórico de Salvador, na ladeira do Pelourinho; e o Ilé Iyá Omi Asé Iyamasé, Terreiro do Gantois, são espaços de resistência religiosa com fundamentos de matriz africana. Reconhecidos pela comunidade negra como territórios de resistência religiosa, reafirmação identitária, proteção e preservação da memória negra com seus signos, símbolos, ritos, cânticos e danças, são territórios que salvaguardam a cultura negra no Brasil e na afro diáspora.

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