Em outubro do ano passado, o estilista Jean-Paul Gaultier enfrentou um processo de um dos museus mais famosos da Itália, a Galleria degli Uffizi, em Florença. Dona de um dos maiores acervos da arte renascentista, a instituição construída pelos Médici no Renascimento quis cobrar direitos autorais do designer de moda pelo uso em sua coleção de imagens da obra O Nascimento de Vênus (1485-1486), de Sandro Boticcelli. Embora tenha sido criada há muitos séculos, caindo em domínio público, a obra faz parte do acervo do museu, que não gostou nada de ver o quadro sendo vendido em camisetas, saias, lenços e outros itens, mesmo que por uma grife de alto luxo.
Se algo tão prosaico quanto a estampa de uma obra de arte em uma peça de roupa pode gerar processo e infringir os direitos autorais, que dizer então das novas tecnologias aplicadas ao mundo da arte, sejam as redes sociais e sua capacidade infinita de disseminação de imagens não autorizadas explicitamente, seja a autoria e a reprodução de NFTs e obras geradas por Inteligência Artificial (ou IA). Sem querer dar conta das especificidades das inúmeras legislações ao redor do globo, o AQA foi tentar entender melhor o balaio de gato em que os direitos autorais estão metidos no Brasil.
Legislação ultrapassada
“A legislação brasileira procura ser mais ampla, para não precisar tanto de atualização”, explica a advogada especializada em direitos autorais Fernanda Galera. Por legislação, entenda-se a lei 9610, de 19 de fevereiro de 1998, que segue regulando as questões de direitos autorais desde então.
Só para o leitor mais jovem entender melhor, em 1998 os telefones celulares ainda não eram “espertos” e a capacidade de acesso e disseminação de informação pela internet era um milésimo do que se vê hoje. Sem falar no fato de que nessa época o ICQ era o programa de mensagens instantâneas preferido da galera e o Fotolog, página em que o usuário compartilhava fotos e recebia comentários, ainda nem tinha sido criado, só surgindo em 2002. O Orkut, primeira rede social de fato, com perfis, troca de comentários e postagens personalizadas, só seria lançado no começo de 2004.
Ou seja, de lá para cá, tudo mudou – radicalmente, diga-se de passagem. “A LDA está super obsoleta”, comenta o advogado Pedro Mastrobuono, que ajudou a criar o Projeto Volpi, dedicado a cuidar do espólio do artista, além de ter sido presidente do Instituto Brasileiro de Museus – Ibram por 3 anos e, atualmente, ser o presidente da Fundação Memorial da América Latina de São Paulo. “A lei de direitos autorais está profundamente atrasada, ela precisaria de uma revisão por completo, talvez ser reescrita, porque ela não consegue suprir as necessidades atuais”, complementa Mastrobuono.
Ele explica que isso acontece pela forma como a lei deve ser juridicamente interpretada: “Há leis de caráter exemplificativo e outras de caráter restritivo, como é o caso da LDA. O primeiro caso tem aplicação mais elástica, mas se a lei é restritiva, precisa ser interpretada sem flexibilidade, ipsis verbis. Na LDA, em um de seus primeiros artigos, está uma sinalização clara de que ela deve ser interpretada restritivamente, o juiz não deve ser muito criativo em sua interpretação.”
“Então aí já se vê o tamanho da encrenca, porque em 1998 não existia a internet e as redes sociais como conhecemos hoje. Ou seja, os exemplos que estão listados lá, as isenções criadas lá, não previam, ninguém tinha o dom da profecia pra que o judiciário criasse uma lei suficientemente técnica para abranger as necessidades atuais da comunicação através das redes sociais, ainda mais no mundo pós-pandêmico”, finaliza o advogado e gestor cultural.
Bagunça nas redes
Mas Fernanda Galera acredita que, com base na letra atual da lei, “um artista pode processar as postagens de uma obra sua no Instagram, por exemplo”. “O que acontece é que muitas vezes, quando respeitado o direito moral do artista (ou seja, a autoria da obra é expressa corretamente dentro da postagem), ele acaba optando por não processar, uma vez que isso também gera divulgação do seu trabalho”.
A difusão da obra do artista pode ser um dos motivos para a isenção de processo, claro, mas, se toda vez que uma obra de Beatriz Milhazes fosse postada, a artista abrisse um processo por direitos de uso de imagem, seu advogado não faria outra coisa da vida, e esse fluxo incessante de novos usos é um complicador.
Caça-níquel
A legislação protege tanto o citado direito moral do artista, que pressupõe que ele deve ser creditado como criador da obra, quanto o direito patrimonial, que incide sobre o uso da obra nas mais diversas finalidades e passa do autor para seus herdeiros e, em alguns casos, para quem comprou a obra. Por isso, muitas vezes os artistas e detentores de direitos patrimoniais preferem deixar passar usos nas redes, desde que divulgando corretamente o trabalho, não difamando e não visando lucro.
Como o caso pleiteado pela Galleria degli Uffizi com relação ao uso comercial de O Nascimento da Virgem por JP Gaultier. “Por essa razão, Banksy registrou seu nome como uma marca, para poder coibir o uso comercial de suas obras, que vinham sendo usadas indiscriminadamente em produtos. Foi uma forma de tentar limitar ainda mais o uso de suas obras”, explica Galera.
Projetos de artista
Voltando ao Brasil, uma forma encontrada por artistas e herdeiros de garantir o bom uso e a não infração dos direitos autorais são os projetos que catalogam e administram seus espólios. Além do acima citado Projeto Volpi, o Projeto Portinari e o Projeto Leonilson são exemplos da boa gestão de obras célebres, permitindo o uso sem custo mediante solicitação expressa para praticamente todas as finalidades que não envolvem comercialização de produtos e tenham como objetivo a difusão da produção artística desses nomes consagrados, até mesmo trabalhos escolares e acadêmicos. Mas é preciso solicitar a autorização diretamente aos projetos, que vão fazer a apreciação e fornecer (ou não) a autorização.
O fato é que a onipresença da câmera do smartphone e a disseminação de publicações em mídias sociais tornaram quase impossível o controle do uso de imagens na internet e nas redes. “No caso do uso pela imprensa, alega-se o direito à informação para o uso de imagens no âmbito da divulgação de exposições ou de uma matéria sobre o artista”, afirma Galera.
Como fazem as instituições
Muitos museus e instituições de arte, que antes não permitiam que o público fotografasse obras não autorizadas expressamente tanto pelos detentores dos direitos morais quanto dos direitos patrimoniais, incluindo as instituições e os colecionadores proprietários da obra, hoje estão mais flexíveis e autorizam fotos, desde que para divulgar a exposição e a obra do artista, mas não para finalidade comercial. A verdade é que as instituições procuram suprir a ausência da legislação oficial com procedimentos e normas criados sob medida e em parceria com advogados especializados, como é o caso da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
“Desafios envolvendo direitos autorais têm sido enfrentados por uma série de instituições de memória pelo mundo. Ao buscar proteger veementemente as prerrogativas do autor, muitas legislações nacionais colocam os museus em situações de insegurança e risco, ainda que esses conduzam suas atividades de boa-fé e procurem ao máximo respeitar as disposições legais”, afirma o diretor-geral do museu, um dos mais importantes da América Latina.
Ele completa: “Na Pinacoteca, estamos diariamente lidando com demandas que envolvem ponderações sobre direitos autorais, em geral em três frentes: na relação com os artistas, na relação com o público, e nas relações interinstitucionais, como o uso para catálogos, produtos e mídias sociais. Diante disso, é essencial que se estabeleçam práticas, protocolos, e que tenhamos em mãos as informações necessárias para avaliar o risco envolvido nas atividades do dia a dia. Em 2020, elaboramos de forma transdisciplinar e com ajuda de Mariana G. Valente e Victor Pavarin a Política de Direito Autoral do Acervo Artístico da Pinacoteca de São Paulo, uma forma de manual que nos ajuda negociar esta questão”.
Depois da pandemia
Com a pandemia e a necessidade de criação de atividades específicas para o meio virtual, um paradigma que mudou permanentemente a forma de fruição artística, estabelecendo atualmente entre o público o consumo de atividades tanto presenciais quanto online, as instituições também enfrentaram o desafio de produzir essa programação na internet sem infringir a LDA.
“Nos três anos que passei à frente do Ibram, entrei com um pedido de mudança da Lei de Direitos Autorais. Esse projeto de lei ainda não foi apreciado pelo Congresso Nacional, no qual tenta-se a liberdade de reprodução para gerar conteúdo e fruição cultural nas mídias sociais daquilo que já é musealizado. Se está no acervo permanente do museu, o museu poderia reproduzir livremente em suas redes sem ferir direitos autorais”, conta Mastrobuono. Seria uma forma de facilitar o dia a dia das instituições, ao menos no caso do uso de imagens em seus sites e redes.
NFTs e IA
Se a situação já é nebulosa e indefinida na internet e redes sociais, o que dizer do metaverso e seus NFTs e da IA? No caso das NFTs, nem mesmo as galerias, os artistas e os compradores têm claros os limites e procedimentos cabíveis no caso de reprodução ou exibição da obra.
Um caso exemplar foi o de Quentin Tarantino, que acreditava ter todos os direitos cabíveis para lançar NFTs do clássico Pulp Fiction, mas que acabou sendo processado pela Miramax, estúdio que produziu o filme e que, contratualmente, teria os direitos sobre a realização de NFTs. No caso da IA, o debate sobre a autoria da obra é o complicador, no meio de toda a polêmica vinda com essa tecnologia.
Só negociando
Enfim, a verdade é que, com a infinidade de usos possíveis para obras de arte na atualidade, não há uma previsão próxima de uma legislação segura e condizente com o cenário tecnológico em que vivemos. Um método continua infalível: negociar diretamente com o detentor dos direitos patrimoniais e dar corretamente os créditos da obra.
Enquanto o criador de moda Gaultier foi processado pela Galleria degli Uffizi por transformar o Nascimento da Vênus em obra vestível, o Ministério do Turismo da Itália transformou essa mesma personagem de Sandro Botticelli numa influencer a passeio em vários pontos turísticos do país. O custo total da campanha está estimado em 9 milhões de euros, o que dá uma pista do motivo pelo qual o uso (considerado duvidoso por muitos) da pintura foi liberado.