Maria Paula Figueiroa Rego, mais conhecida como Paula Rego, nasceu em Lisboa no ano de 1935 em uma família privilegiada durante o Estado Novo, como era chamada a ditadura imposta por Antônio de Oliveira Salazar. Durante seus primeiros anos de vida, Rego viveu com os avós na quinta, propriedade típica portuguesa, que sua família possuía na Ericeira enquanto seus pais terminavam seus estudos acadêmicos em Londres. Entretanto, ainda criança, Rego enfrentou uma séria tuberculose, o que fez com que sua família a levasse para morar junto ao mar, em Estoril.
O talento artístico de Paula Rego e sua aptidão para a pintura foram observados por seus professores quando ela ainda era uma menina na escola. Logo que ela se formou e apoiada por seus pais, mudou-se para Londres em 1952, onde ela estudaria na Slade School of Fine Arts e onde também conheceria o pintor inglês Victor Willing com quem se casaria anos mais tarde e com quem teria seus três filhos. Após os estudos, Paula regressa a Portugal, onde volta a viver na Quinta Figueiroa Rego. Nesta mesma época sua carreira como artista vai se deslanchando naturalmente, participando ocasionalmente de exposições na Inglaterra e em Portugal. Entretanto, no início da década de 1970, Rego passa por problemas financeiros e decide se mudar de vez para a Inglaterra, onde ela se radicou e viveu até morrer, aos 87 anos, ontem, dia 8 de junho.
Inspirações
O machismo e subjugação da mulher em relação ao homem certamente a afetaram de uma forma muito particular. Talvez por ter passado anos da vida tomando conta de seu marido, acometido por uma severa esclerose múltipla, ou por ter nascido em uma família tradicional em um cenário social e político no qual o machismo era ainda muito pior. Fato é que seu trabalho pode ser compreendido como uma história narrada: a história da opressão das mulheres. Outra grande inspiração para suas obras eram os contos de fadas, que conferem às suas pinturas um generoso toque de fantasia e magia e fazem com que assuntos terríveis sejam abordados como se fossem ilustrações de livros. Mas não se engane, as telas de Rego não tem absolutamente nada de leves, bem observadas elas narram quase uma história de terror.
Acredito que, sobretudo para as mulheres, a sua obra seja muito forte. Dói observar algumas de suas telas, pois elas retratam uma história invariavelmente vivida por todas nós, em diferentes níveis de intensidade – ou de privilégios. A Filha do Policial, de 1987, retrata uma menina limpando as botas de trabalho do pai que não precisa de mais interpretações; a tela Branca de Neve engole a maçã envenenada, de 1995, distorce o conto de fadas da forma que nos fora contado na infância; já com A Noiva, de 1994, e As empregadas, de 1987, as mulheres são reduzidas a papéis restritos.
Séries Aclamadas
Rego, em sua ampla produção, deu vida a séries marcantes, a das Bailarinas é uma delas. Em muitas telas a pintora retratou bailarinas absolutamente fora do lugar comum ao qual elas pertencem na maioria das vezes. As bailarinas de Rego são grandes, fortes, musculosas até, e vestem preto. Suas feições não são delicadas e elas não são retratadas nas clássicas posições do ballet, às vezes estão sentadas, apoiadas sobre os braços, descalças e tortas. Outra série da artista que ficou famosa foram as oito pinturas de Virgem Maria encomendadas em 2002 por Jorge Sampaio, presidente de Portugal à época, para ilustrar a capelinha do Palácio de Belém. Rego ilustrou, então, as cenas bíblicas da Anunciação à Adoração da Virgem, mas à sua maneira, é claro. O trabalho traz a mãe de Deus grávida, parindo deitada sobre a terra, anjos humanos e afastados de um imaginário etéreo e, por fim, Maria como uma mulher comum apresentando seu filho comum a pastores comuns – o resultado gerou um alvoroço e foi acusado até de blasfêmia.
Outra obra de Rego que chama muito a atenção é Mulher-Cão, de 1994, que foi inspirada em uma história conhecida por Rego que fala sobre uma mulher que vivia com animais em uma casa isolada e ouvia uma voz que lhe mandava matar todos os animais até que ela enlouquece com a voz e acaba engolindo todos um a um. Apesar de ter sido inspirada nesta história, a obra marca uma nova série de trabalhos que trazem mulheres solitárias, viscerais, ferozes e que possuem uma espécie de sexualização animalesca.
Mas nenhuma série se compara a Abortos. Logo que o governo português decidiu pela não descriminalização do aborto em 1998, Paula Rego, que havia participado ativamente da campanha em prol da descriminalização, reagiu com o pincel da mão e retratou várias cenas de mulheres em situações de desamparo realizando abortos clandestinos. Em suas feições é possível ver a dor, o desespero, a marginalização e a vergonha. Para Rego, como ela falava abertamente, “tornar o aborto ilegal é forças as mulheres a recorrerem a clínicas clandestinas”. Suas imagens, criadas com a intenção de serem amplamente difundidas, buscavam trazer justiça às mulheres e o direito e o poder de exercer escolhas. Mas o mais difícil é dizer que hoje, mais de vinte anos depois, a pauta e a luta continuam as mesmas e as pinturas de Rego ainda continuam retratando um drama do presente.
Exposições recentes e reconhecimento público
O Nome e a obra de Paula Rego nunca foram segredo para ninguém, a artista foi condecorada pelo governo de Portugal e pela Rainha Elizabeth II, além de ter recebido inúmeros outros títulos de reconhecimento durante a carreira. Entre julho e outubro do ano passado, o Tate Britain realizou uma enorme retrospectiva do trabalho da artista, a maior de sua carreira, reunindo mais de 100 obras entre pinturas, gravuras, pastéis e colagens com o objetivo de retratar ao público não somente a sua produção artística, mas também a sua história de vida.
Neste ano, talvez na última grande exposição de seu trabalho em vida, sua obra está exposta ao público na 59ª Bienal de Veneza, cujo tema foi inspirado no livro Leite dos Sonhos, de Leonora Carrington. Em uma sala dedicada apenas a ela, estão dispostos 24 trabalhos produzidos entre 1989 e 2019 que consagram a extraordinariedade de sua carreira artística e fecham com chave de ouro a sua passagem por aqui.