“A mais terrível de nossas heranças é levar conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista”. Um trecho de O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, que aponta como a sociedade brasileira é marcada pela dor de tantas violências às quais foi submetida ao longo de sua formação, funciona como epílogo para a exposição de artista Paul Setúbal na Casa Triângulo. É a primeira individual do artista na galeria desde que foi divulgada sua representação, no meio de 2019. Sob o título Bronze, Couro, Ouro, Sangue, a exposição foi inaugurada no último dia 27 de fevereiro e poderá ser visitada até 3 de abril.
Em texto crítico de Priscyla Gomes, curadora associada do Instituto Tomie Ohtake, ela aponta que o artista propõe nas obras que fazem parte desta exposição uma leitura que sugere “uma contra-história do progresso do Centro-Oeste brasileiro” que está presente em uma “síntese marcada pela violência e pela dominação como um traço mordaz da sociedade brasileira”. Essa síntese está presente em um conjunto de trabalhos de Setúbal que mostra a diversidade de sua prática artística, em instalações, pintura, esculturas e também em vídeo. Essas obras levam, de forma direta ou indireta, os materiais que dão nome à exposição: o sangue, o bronze, o ouro e o couro. Elementos que fazem parte, de alguma forma, dessa história de dominação no Brasil.
Essa reflexão em torno da violência e da dominação vem desde lá muito longe. O artista comenta que vai retomando esses símbolos da História do país e faz isso também como forma de atualizá-los, instaurando nas obras comentários à luz do presente. Isso ocorre em todas as obras. Em A grande peleja (2020) ele traz a representação de um capacete utilizado pela cavalaria imperial, sendo uma réplica da peça utilizada em 1822, ano da Independência do Brasil, que completa seu bicentenário no próximo ano. “Eu parti das fotos de capacetes que estão em vários museus para reconstruir um fac-símile dessa peça”, conta Setúbal ao ARTEQUEACONTECE.
Na peça original, há um dragão, que foi simbólico no período colonial. O artista troca a imagem nesta escultura pela imagem de S. Jorge matando o dragão, a imagem de um santo guerreiro. “É muito curioso que o São Jorge também é o padroeiro da cavalaria, que é justamente quem aniquila o dragão — quem aniquila o símbolo do poder”. Vivendo entre Goiânia e Brasília, o artista viu muitas réplicas desse capacete em guardas que fazem a segurança de prédios governamentais na capital federal, como nos ministérios, e também em eventos oficiais, como as posses presidenciais.
Durante residência que realizou em Londres no início de 2020, Paul diz que viu várias vezes pela cidade a Guarda da Cavalaria Britânica utilizando capacetes que também traziam um dragão bastante similar ao brasileiro. “Estamos falando de colonização. Nós pegamos esses símbolos que vieram da Europa e reformulamos aqui”, ele explica. Em uma série que chamou de O grande dragão (2020), o artista continua esta discussão, agora utilizando o bronze e o ouro para criar peças que representam equipamentos utilizados por forças militares: luvas, coturnos, coldre e colete. “São paramentos táticos usados pela polícia, pela milícia, pelo pistoleiro…”. Essas peças aparecem dilaceradas e foram feitas desta forma para, segundo ele, remontarem em algum momento à figura de corpos.
Intituladas Pesares, esculturas na parede “faz alusão ao duplo sentido entre o peso da carga mas também à ideia do pesar do arrependimento, dessa ideia do peso de tudo o que a gente carrega na vida”, Setúbal relata. Essas obras trazem uma referência à questão do sertanejo do Centro Oeste e a ideia da “brutalidade”, com alforjes e coldres usados para carregar armas de fogo. O artista explica que foi construindo essas obras a partir de imagens de objetos de coerção e de dominação. Essas esculturas são compostas por couro animal e bronze, algumas trazem inserções de pirita.
A mostra conta ainda com um tríptico. Três telas juntas que são pintadas com sangue do artista, tendo também terra vermelha e folha de ouro. A obra se chama Sinapses e levou cinco anos para ficar pronta, tendo sido realizada entre 2015 e 2020. Nesta obra, ele faz uma alusão aos estudos de Da Vinci sobre o corpo humano durante o Renascimento e “sugere uma espécie de construção da subjetividade onde habitam muito das relações autoritárias da
contemporaneidade”.
Outra obra a ser destacada é o vídeo Conto da Roça (2020), no qual enquanto J BAMBERG, Mestre Angoleiro baiano que vive no DF, toca berimbau as legendas contam uma história os conflitos e as lutas que acontecem nos interiores do Brasil pela posse de terras. “A legenda do filme em formato de conto evidencia uma mentalidade fundada pela violência, com planos sucessivos de armas e uma constante apologia à bravura, à honra e à ideia de que a morte do outro possa ser uma forma de atenuar um histórico de injustiças sociais”, diz texto sobre a obra.
Siga os protocolos de segurança contra Covid-19 ao visitar a exposição. Utilize máscara e obedeça ao distanciamento social.
Paul Setúbal: BRONZE, COURO, OURO, SANGUE
Data: de 02 de março a 03 de abril de 2021
Local: Casa Triângulo (R. Estados Unidos, 1324 – Jardins, São Paulo)
Mais informações: www.casatriangulo.com/