Zanele Muholi no IMS Paulista: ativismo visual e afirmação da beleza

Há mais de 20 anos, seu trabalho compõe um arquivo de histórias que recusam o esquecimento e reivindicam a beleza como afirmação e cura

por Diretor
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A exposição  ”Zanele Muholi: Beleza valente”  no Instituto Moreira Salles (IMS) Paulista marca a primeira grande apresentação antológica de sua obra no Brasil. Conhecida internacionalmente como um dos principais nomes do ativismo visual contemporâneo, a pessoa artista — que se identifica como não binária — encontrou no país um terreno fértil para aprofundar o diálogo entre arte e política, sobretudo pela forma como seu trabalho ressoa nas lutas da comunidade LGBTQIAPN+ e de pessoas negras.

Somnyama Ngonyama II, Oslo, Noruega, 2015 © Zanele Muholi, cortesia Yancey Richardson Gallery, Nova York

Zanele Muholi e o ativismo visual

Zanele Muholi prefere o termo “ativista visual” a “artista” porque, desde o início de sua carreira, suas fotografias são concebidas como ferramentas políticas, voltadas a dar visibilidade a corpos e narrativas frequentemente marginalizados. Na África do Sul, onde nasceu em 1972 em Umlazi, Durban, cresceu sob o regime do apartheid (1948-1994), que impunha a segregação sistemática da população não branca, restringindo direitos, espaços e oportunidades. A adoção de uma nova Constituição, em 1996, e a lei que instituiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo (2006), embora representassem avanços legais, não foram suficientes para erradicar crimes de ódio e violências contra pessoas negras LGBTQIAPN+. Nesse contexto, Muholi levantou a câmera não só para denunciar agressões — sobretudo contra mulheres (cis e trans), lésbicas e pessoas não binárias — mas, também, se dedicou a construir um arquivo vivo que celebra o afeto, as subjetividades e a beleza da comunidade negra queer.

Ao longo dos anos, o trabalho de Muholi se expandiu para outras linguagens e experiências, sem jamais perder o foco no envolvimento consciente das pessoas retratadas. Na série Faces e fases (2006–), em centenas de retratos em preto e branco, cada pessoa fotografada é convidada a escolher como quer se apresentar. Muholi acompanha essas mesmas pessoas ao longo do tempo, registrando transições de gênero, trajetórias afetivas e processos de autoafirmação. Nesse conjunto, o formato de “grade” e o aparecimento constante de novos rostos (ou o desaparecimento de alguns) evidenciam tanto a diversidade dessas existências quanto a dor das perdas causadas pelos crimes de ódio, pela marginalização e pela ausência de proteção estatal.

Miss D’vine III, Yeoville, Joanesburgo, África do Sul, 2007 © Zanele Muholi, cortesia Yancey Richardson Gallery, Nova York

Em Brave Beauties (Bravas belezas) (2013–), a ênfase recai sobre pessoas negras trans e lésbicas (muitas vezes participantes de concursos de Miss Gay RSA). A série reforça a ideia de que a “beleza” pode ser — e é — uma insurgência política para corpos que sofrem tentativas persistentes de invisibilidade ou submissão.

“Tudo o que eu quero ver é apenas a beleza. E beleza não significa que você tenha que sorrir, mostrar os dentes ou se esforçar mais. Basta existir.” — Zanele Muholi

Outro ponto alto é Somnyama Ngonyama (Salve a Leoa Negra!), um conjunto de autorretratos iniciado em 2012, no qual Muholi intensifica digitalmente o contraste de sua pele negra e utiliza objetos cotidianos — pneus, esponjas de aço, pregadores de roupa, entre outros — em arranjos performáticos que dialogam com a ancestralidade, reivindicando autonomia sobre o próprio corpo e criticando o uso histórico da fotografia como instrumento de tipificação étnica e social. Esse projeto funciona, segundo a própria pessoa artista, como uma forma de autocura, em que cada imagem reencena traumas, violências e exclusões, mas também reimagina a própria negritude como grandeza.

Brasil e África do Sul: paralelos e pontos de contato

Como analisa a pesquisadora e professora Bárbara Copque em seu texto Zanele Muholi e a insurgência da beleza em espaço de apagamentos, o Brasil viveu, entre as décadas de 1960 e 1980, uma ditadura que lançou mão de censura e repressão sob o argumento da “moral e dos bons costumes”. Houve intensa perseguição aos “desviantes”, aos “perigos externos” e, de maneira particularmente violenta, a pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e habitantes das periferias. Esse cenário histórico — somado à negligência atual do Estado, sobretudo quanto a direitos sociais, saúde mental e proteção de minorias — faz do Brasil o país com a maior Parada LGBTQIAPN+ do mundo e, paradoxalmente, um dos recordistas em assassinatos de pessoas trans e homofobia letal.

Assim como na África do Sul, os mecanismos de apagamento se articulam com práticas institucionais e culturais. No caso brasileiro, a herança colonial e a “democracia racial” forjada no imaginário coletivo ocultam discriminações estruturais e reforçam a letalidade contra esses grupos historicamente marginalizados. Lésbicas negras, tanto cis quanto trans, tornam-se alvos especialmente vulneráveis, pois vivenciam o atravessamento do racismo, do sexismo e da lesbofobia — combinados à expectativa social de obediência às normas heteropatriarcais.

Ao reler o contexto sul-africano a partir do brasileiro, Copque relaciona a produção artística de Zanele Muholi à de outras criadoras negras brasileiras, como Gê Viana (com suas fotomontagens que ressignificam álbuns e postais marcados pela lógica colonial) e Mayara Ferrão (que usa inteligência artificial para gerar “álbuns afetivos” e romper perspectivas colonizadoras). Todas buscam, de maneiras diversas, criar acervos de resistência à invisibilização e contribuir para a produção de futuridades queer. Tais práticas reforçam a urgência de se constituir arquivos visuais que, como em Faces e fases, tornem-se antídotos contra o esquecimento.

Vencedoras do Mister Lésbica de Daveyton, Joanesburgo, África do Sul, 2013 © Zanele Muholi, cortesia Yancey Richardson Gallery, Nova York

Além desses diálogos artísticos, a presença física de Muholi em São Paulo — que participou do Festival ZUM a convite do IMS Paulista em 2024 — também reforçou o intercâmbio prático com coletivos e ativistas locais. Entre esses espaços, encontram-se a Casa 1, a Casa Chama e o Acervo Bajubá, referências na defesa da comunidade LGBTQIAPN+. A vinda de Muholi ao Brasil não só aproximou a pessoa artista de realidades locais — como o racismo estrutural, a transfobia e a precariedade que tantos enfrentam nas periferias brasileiras —, mas também fomentou colaborações que deram origem a novos retratos e vídeos apresentados pela primeira vez na exposição Beleza valente.

Ao compartilhar vivências com organizações culturais e grupos de resistência, o ativismo visual de Muholi incorporou histórias e corpos brasileiros. Cada nova imagem, como costuma afirmar a própria pessoa artista, é um arquivo vivo das lutas contemporâneas, tecendo vínculos de solidariedade entre a África do Sul e o Brasil.

Esse intercâmbio ganhou contornos ainda mais sensíveis em um autorretrato recente, em exibição na mostra, criado em Salvador dois dias após as celebrações de Iemanjá. Muholi descreveu a impressão de estar em casa, embora a distância fosse palpável, ao observar as pessoas negras em comunhão com a água, em um ritual marcado pela espiritualidade, beleza e senso de unidade. Ao mesmo tempo, a pessoa artista notou que nem todos têm acesso às margens — reforçando o papel simbólico da água como berço ancestral e, também, como fronteira que expõe desigualdades ainda vigentes. A experiência, segundo Muholi, uniu o acolhimento daquela comunidade às reflexões sobre pertencimento e deslocamento, demonstrando como o rito pode (re)conectar histórias e corpos negros em busca de cura e afirmação.

Nanini, 1701 MLG, Rio Vermelho, Salvador, Bahia, Brasil, 2025. © Zanele Muholi. Obra da série Somnyama Ngonyama

Para além dos muros institucionais

Em complemento aos registros fotográficos, a exposição no IMS contextualizou o trabalho de Muholi em projetos amplos de apoio à comunidade — como a plataforma online Inkanyiso, que reúne reportagens e depoimentos de pessoas LGBTQIAPN+ sul-africanas, ou residências artísticas e espaços de amparo para vítimas de violência. São iniciativas que comprovam a extensão do ativismo visual: o ato de fotografar é apenas uma parte de uma atuação política mais ampla.

Ao unir reflexão estética, denúncia política e reimaginação de futuros, Zanele Muholi construiu, na mostra Beleza valente , um espaço de reparação e de horizonte. Seus retratos apontam para a possibilidade de que a arte seja, simultaneamente, documento, manifesto, arquivo e espelho de afetos.

Nas palavras de Muholi, “viver e fazer-se visível” é um direito que se estende a todas as pessoas, e cada imagem que cria é uma maneira de celebrar essa presença. Em diálogo com ativistas, teóricos e pessoas artistas brasileiras, essa obra nos lembra que a fotografia pode, também, ser espaço seguro de encontro e de autocuidado. De fato, como reforça Audre Lorde, “o nosso trabalho se tornou mais importante do que o nosso silêncio”. E ver a exposição de Muholi no Brasil, é integrar-se a esse grande coro de existências insurgentes que reclamam respeito, dignidade e beleza — aqui e agora.

Katlego Mashiloane e Nosipho Lavuta, Ext. 2, Lakeside, Joanesburgo, África do Sul, 2007 © Zanele Muholi, cortesia Yancey Richardson, Nova York

Serviço:
“Zanele Muholi: Beleza valente”
Local: IMS Paulista
Período expositivo: 22 de fevereiro até 22 de junho de 2025
Entrada Gratuita

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