A exposição ”Zanele Muholi: Beleza valente”, em cartaz no Instituto Moreira Salles (IMS) Paulista, apresenta pela primeira vez no Brasil uma retrospectiva abrangente da obra de Muholi. Reconhecide internacionalmente como um dos principais nomes do ativismo visual contemporâneo, a pessoa artista — que se identifica como não binária — encontrou no país um campo fértil para ampliar o diálogo entre arte e política, especialmente pela força com que seu trabalho se conecta às lutas da população LGBTQIAPN+ e das pessoas negras.
Zanele Muholi e o ativismo visual
Zanele Muholi prefere ser chamade de “ativista visual” em vez de “artista”. Desde o início da carreira, suas fotografias foram pensadas como instrumentos de enfrentamento político – imagens que colocam em cena corpos e histórias frequentemente deixados à margem. Nascide em 1972 em Umlazi, Durban, no contexto do apartheid sul-africano (1948–1994), Muholi cresceu sob um regime que institucionalizou a segregação racial, restringindo direitos, acessos e presenças da população negra. Embora a nova Constituição de 1996 e a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2006 tenham representado avanços, a violência contra pessoas negras LGBTQIAPN+ continua presente – muitas vezes invisibilizada. É nesse cenário que Muholi ergue a câmera, para denunciar agressões – especialmente contra mulheres (cis e trans), lésbicas e pessoas não binárias –, mas também para afirmar vida, afeto e identidade.
Com o tempo, sua produção se expandiu para outras linguagens e experiências, mas sem abrir mão do envolvimento ativo das pessoas retratadas. Na série Faces e fases (2006–), em centenas de retratos em preto e branco, cada pessoa fotografada é convidada a escolher como quer se apresentar. Muholi acompanha essas mesmas pessoas ao longo do tempo, registrando transições de gênero, vínculos afetivos e processos de autoafirmação. Nesse conjunto, o formato de “grade” e o aparecimento constante de novos rostos (ou o desaparecimento de alguns) evidenciam tanto a diversidade dessas existências quanto a dor das perdas causadas pelos crimes de ódio, pela marginalização e pela ausência de proteção estatal.
Em Brave Beauties (Bravas belezas) (2013-), a ênfase recai sobre pessoas negras trans e lésbicas (muitas vezes participantes de concursos de Miss Gay RSA). A série reforça a ideia de que a “beleza” pode ser – e é – uma insurgência política para corpos que sofrem tentativas persistentes de invisibilidade ou submissão.
“Tudo o que eu quero ver é apenas a beleza. E beleza não significa que você tenha que sorrir, mostrar os dentes ou se esforçar mais. Basta existir.” – Zanele Muholi
Outro ponto alto é Somnyama Ngonyama (Salve a Leoa Negra!), um conjunto de autorretratos iniciado em 2012. Nele, Muholi intensifica digitalmente o contraste de sua pele e utiliza objetos cotidianos – pneus, esponjas de aço, pregadores de roupa, entre outros – em arranjos performáticos que dialogam com a ancestralidade, reivindicando autonomia sobre o próprio corpo e criticam o uso histórico da fotografia como instrumento de tipificação étnica e social. Esse projeto funciona, segundo a própria pessoa artista, como uma forma de autocura, em que cada imagem reencena traumas, violências e exclusões, mas também reimagina a própria negritude como grandeza.
Brasil e África do Sul: paralelos e pontos de contato
Como analisa a pesquisadora e professora Bárbara Copque em seu texto Zanele Muholi e a insurgência da beleza em espaço de apagamentos, o Brasil viveu, entre as décadas de 1960 e 1980, uma ditadura que lançou mão de censura e repressão sob o argumento da “moral e dos bons costumes”. Houve intensa perseguição aos “desviantes”, aos “perigos externos” e, de maneira particularmente violenta, a pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e habitantes das periferias. Esse cenário histórico — somado à negligência atual do Estado, sobretudo quanto a direitos sociais, saúde mental e proteção de minorias — faz do Brasil o país com a maior Parada LGBTQIAPN+ do mundo e, paradoxalmente, um dos recordistas em assassinatos de pessoas trans e homofobia letal.
Assim como na África do Sul, os mecanismos de apagamento se articulam com práticas institucionais e culturais. No caso brasileiro, a herança colonial e a “democracia racial” forjada no imaginário coletivo ocultam discriminações estruturais e reforçam a letalidade contra esses grupos historicamente marginalizados. Lésbicas negras, tanto cis quanto trans, tornam-se alvos especialmente vulneráveis, pois vivenciam o atravessamento do racismo, do sexismo e da lesbofobia — combinados à expectativa social de obediência às normas heteropatriarcais.
Ao reler o contexto sul-africano a partir do brasileiro, Copque relaciona a produção artística de Zanele Muholi à de outras criadoras negras brasileiras, como Gê Viana (com suas fotomontagens que ressignificam álbuns e postais marcados pela lógica colonial) e Mayara Ferrão (que usa inteligência artificial para gerar “álbuns afetivos” e romper perspectivas colonizadoras). Todas buscam, de maneiras diversas, criar acervos de resistência à invisibilização e contribuir para a produção de futuridades queer. Tais práticas reforçam a urgência de se constituir arquivos visuais que, como em Faces e fases, tornem-se antídotos contra o esquecimento.
Além desses diálogos artísticos, a presença física de Muholi em São Paulo — que participou do Festival ZUM a convite do IMS Paulista em 2024 — também reforçou o intercâmbio prático com coletivos e ativistas locais. Entre esses espaços, encontram-se a Casa 1, a Casa Chama e o Acervo Bajubá, referências na defesa da comunidade LGBTQIAPN+. A vinda de Muholi ao Brasil não só aproximou a pessoa artista de realidades locais — como o racismo estrutural, a transfobia e a precariedade que tantos enfrentam nas periferias brasileiras —, mas também fomentou colaborações que deram origem a novos retratos e vídeos apresentados pela primeira vez na exposição Beleza valente.
Ao compartilhar vivências com organizações culturais e grupos de resistência, o ativismo visual de Muholi incorporou histórias e corpos brasileiros. Cada nova imagem, como costuma afirmar a própria pessoa artista, é um arquivo vivo das lutas contemporâneas, tecendo vínculos de solidariedade entre a África do Sul e o Brasil.
Esse intercâmbio ganhou contornos ainda mais sensíveis em um autorretrato recente, em exibição na mostra, criado em Salvador dois dias após as celebrações de Iemanjá. Muholi descreveu a impressão de estar em casa, embora a distância fosse palpável, ao observar as pessoas negras em comunhão com a água, em um ritual marcado pela espiritualidade, beleza e senso de unidade. Ao mesmo tempo, a pessoa artista notou que nem todos têm acesso às margens — reforçando o papel simbólico da água como berço ancestral e, também, como fronteira que expõe desigualdades ainda vigentes. A experiência, segundo Muholi, uniu o acolhimento daquela comunidade às reflexões sobre pertencimento e deslocamento, demonstrando como o rito pode (re)conectar histórias e corpos negros em busca de cura e afirmação.
Para além dos muros institucionais
Em complemento aos registros fotográficos, a exposição no IMS contextualizou o trabalho de Muholi em projetos amplos de apoio à comunidade — como a plataforma online Inkanyiso, que reúne reportagens e depoimentos de pessoas LGBTQIAPN+ sul-africanas, ou residências artísticas e espaços de amparo para vítimas de violência. São iniciativas que comprovam a extensão do ativismo visual: o ato de fotografar é apenas uma parte de uma atuação política mais ampla.
Ao unir reflexão estética, denúncia política e reimaginação de futuros, Zanele Muholi construiu, na mostra Beleza valente , um espaço de reparação e de horizonte. Seus retratos apontam para a possibilidade de que a arte seja, simultaneamente, documento, manifesto, arquivo e espelho de afetos.
Nas palavras de Muholi, “viver e fazer-se visível” é um direito que se estende a todas as pessoas, e cada imagem que cria é uma maneira de celebrar essa presença. Em diálogo com ativistas, teóricos e pessoas artistas brasileiras, essa obra nos lembra que a fotografia pode, também, ser espaço seguro de encontro e de autocuidado. De fato, como reforça Audre Lorde, “o nosso trabalho se tornou mais importante do que o nosso silêncio”. E ver a exposição de Muholi no Brasil, é integrar-se a esse grande coro de existências insurgentes que reclamam respeito, dignidade e beleza — aqui e agora.
Serviço:
“Zanele Muholi: Beleza valente”
Local: IMS Paulista
Período expositivo: 22 de fevereiro até 22 de junho de 2025
Entrada Gratuita