Quem visitou a última individual de Debora Bolsoni na Galeria Superfície, O Inferno de Boazinha (2018-19), ainda tem na memória especialmente as obras em feltro e tecidos que ocuparam as salas expositivas junto de instalações e objetos escultóricos. Quem for visitar a nova exposição da artista na mesma galeria, em São Paulo, terá uma surpresa! Isso porque Fuso Motriz, mostra que fica em cartaz de 16 de setembro a 13 de novembro, tem relações com seus trabalhos anteriores mas as novas obras foram desenvolvidas a partir de “novas decisões de linguagem”, como pontua o curador Leandro Muniz, responsável pelo texto crítico que acompanha a mostra.
Embora tenham assuntos e formatos diferentes, sendo a grande maioria em pequenas dimensões, em todas as mais de 20 peças a artista utilizou de chapas metálicas como suporte, que da forma que são ocupadas pelas intervenções imagéticas realizadas pela artista se assemelham a um papel. Nessas imagens que vão sendo criadas, ela fez o uso de materiais como lápis de cor, grafite, esmalte, guache, caneta hidrocor e tinta acrílica, além de trazer em algumas composições ferro e cerâmica.
Desenho sempre fez parte da trajetória de Bolsoni, mas a artista nunca tinha feito uma exposição que mostrasse obras com eles. A artista conta ao ARTEQUEACONTECE que esta mostra surge como uma resposta ao momento, ao fato de estar trabalhando em isolamento ao longo de 2020 e 2021, no ateliê que tem em sua casa. A feitura desses desenhos surgiu para ela como uma forma de se organizar, uma forma de se localizar diante dos desafios impostos pelo momento, que demandaram modificações em processo de criação.
A experiência em trabalhar com as chapas de metal também pesou na decisão de finalmente exibir trabalhos em desenho: “Faz muito tempo que eu queria achar um suporte que me desse a sensação próxima ao desenhar na parede”, explica Bolsoni, que sempre gosto muito de realizar desenhos diretamente em paredes. Ela encontrou esse resultado similar nas chapas, que para ela produziram impressões que dialogam “com o deslocamento do espaço, da superfície”.
Anteriormente, ela já tinha produzido obras que faziam o uso dessas chapas, mas em adereços para esculturas, nunca com elas sendo placas. Para Muniz, “a decisão por apresentar uma exposição de desenhos acena para uma mudança no estatuto do corpo, do tempo e do próprio trabalho” da artista, por não haver uma espécie de característica antropomórfica que permeava seus trabalhos anteriores.
A artista conta ainda que utilizar esse suporte também foi uma solução muito bem-vinda para exibir seus desenhos porque ela não consegue pensar uma exposição na qual mostraria desenhos em papel. “Tenho dificuldade de pensar meus trabalhos emoldurados e colocados na parede”, ela comenta, ressaltando que a placa de metal também surge de uma busca por algo que a deixasse confortável nesse sentido, que driblasse essa sua resistência com a moldura que, para ela, faz uma separação do que é o objeto e do que é o “espaço de vida”.
A abstração da experiência do isolamento está presente na natureza das imagens que acabam aparecendo nas obras. De acordo com a artista, não existem referências a objetos de uso costumeiro neles, o que usualmente poderia acontecer nas representações que surgem ao longo de um período de quarentena. O que existe são referências aos visores de relógio.
Bolsoni pontua que, mesmo assim, a referência não é aos objetos como um todo, mas sim aos painéis de leitura que eles apresentam. Aqui aparece uma ligação com o tempo nessa produção recente da artista. Essa relação também aparece no texto de Muniz, que cita a presença de “mostradores de relógios, gráficos de dados, radares e outros instrumentos de medição do tempo” nas obras que fazem parte da exposição e ainda proclama o tempo como fio condutor da mostra, ponderando que “o tempo se encadeia e o território é mental: mais visual e menos corpóreo”.
Essa questão da diminuição do que é corpóreo está relacionada também com o isolamento. Isso porque, nas palavras de Muniz, a artista “deixa-se afetar pela falta de experiências sociais, implicando a quase anulação do volume nas obras desta individual”. Embora alguns trabalhos apresentem dobras e sobreposições, essa retirada do volume e o mergulho no que é plano, segundo ela, tem a ver com o desejo de falar sobre outras formas de viver as dimensões.
A aproximação maior do plano vem da releitura de Planolândia: Um romance de muitas dimensões, escrito pelo inglês Edwin A. Abott em 1884, no qual os habitante de um mundo bidimensional são figuras geométricas para as quais as relações sociais dependem de lados que se têm e de como esses lados correspondem a outras formas e tamanhos presentes nesse mundo, fazendo uma crítica às hierarquias sociais. Em algum momento do livro, a vida padrão da cidade é desafiado pela invasão de uma esfera, que insere ali uma visão tridimensional, construindo uma outra realidade: “É recorrente que Bolsoni comente a própria história da arte e da cultura, mas retomar Planolândia em um momento de fake news, negacionismos e um cotidiano mediado por telas, indiretamente tem implicações de como o contexto é internalizado em seu trabalho”, sinaliza Muniz.
Débora Bolsoni: Fuso Motriz
Data: de 16 de setembro a 13 de novembro
Local: Galeria Superfície (Rua Oscar Freire, 240 – Jardim Paulista, São Paulo)
Mais informações: http://www.galeriasuperficie.com.br/