Goste ou não goste, Romero Britto é um fenômeno inigualável. Nascido em uma família simples de Recife, Pernambuco, Romero é hoje reconhecido no mundo inteiro, mesmo sem nunca ter sido acolhido pelo circuito tradicional de arte. Distante dos grandes museus, feiras de arte e até mesmo de exposições icônicas como Bienais e Documenta de Kassel, ele criou seu próprio mercado e comercializa suas obras por valores entre US$ 1 mil e US$ 1 milhão – como o quadro A Primeira Ceia, que vendido por esse valor, em 2020, para um colecionador estadunidense.
Desde o lançamento do trailer de seu documentário, previsto para ser lançado em dezembro deste ano, o pintor tem novamente sido foco de atenção entre os entusiastas das artes. O filme, que conta com a produção de Muse Storytelling e produção executiva de Lucas LC Vidal, Caitlin Miranda e Grant Peelle, apresentará a trajetória do artista também pelo olhar de amigos próximos e grandes celebridades, como o músico Andrea Bocelli e o ator e ex-governador da Califórnia Arnold Schwarzenegger.
Por isso, convidamos o artista para nos contar os segredos de seu sucesso singular e surpreendente. Em entrevista, Romero se revelou como um verdadeiro diplomata, tal como seu sonho quando mais jovem. E talvez seja esta uma das grandes chaves de seu sucesso: sua constante esquiva em firmar qualquer tipo de posicionamento, gerando uma popular transitoriedade entre os mais diversos ambientes, públicos e colecionadores. Confira, a seguir, um pouco da nossa conversa:
Giovana Nacca – A profissão de artista não é muito estimulada para a grande parte das crianças no Brasil. Você também chegou a entrar na faculdade de direito antes de seguir como artista. Quando e como foi o momento em que você descobriu a possibilidade da arte como profissão?
Romero Britto – A arte estava sempre presente na minha vida, mas eu imaginava que devia ter um trabalho, como todo mundo, e a arte seria mais um hobbie. E eu não imaginava que a arte fosse se tornar tudo isso para mim. Eu tinha essa ideia de viajar pelo mundo inteiro, de conhecer vários tipos de cultura, países e coisas mais, por isso eu queria tentar o Itamaraty [Ministério das Relações Exteriores do Brasil]. E um amigo meu falou que o melhor curso que eu deveria fazer seria o de Direito. Na verdade, eu nunca imaginei ser advogado, mas o curso seria um caminho para chegar lá no Itamaraty e entrar naquela carreira diplomática.
Só que quando eu estava na universidade, eu me senti muito infeliz. Eu vi que aquilo não era para mim. Então decidi tentar minha vida como artista. Eu já estava pintando no Brasil, já tinha feito uma exposição lá em Recife, na Universidade Católica de Pernambuco, e já tinha tido experiência de ter vendido meu trabalho. Então quando vim para os Estados Unidos, com 25 anos, para visitar um amigo que estava estudando aqui, eu gostei muito. E claro, eu fiz outros trabalhos que não eram coisas que eu queria fazer para o resto da minha vida. Era mais uma questão de sobrevivência, mas sempre eram coisas que eu gostava. Por exemplo, eu trabalhei um período aqui fazendo jardinagem, depois eu fui trabalhar em um lugar de fazer pizza, depois eu também fui lavar carro…
GN – Então quando você decidiu ser artista ainda era uma “aposta”, não tinha garantia de que ia dar certo.
RB – Eu nunca pensei numa aposta, eu só estava fazendo o que eu gostava. Mas chegou um momento que eu realmente tive que tomar uma decisão. E eu tinha que tentar mostrar meu trabalho, já que em geral, poucas galerias têm coragem de investir em um talento jovem, em uma pessoa pioneira, por exemplo. Eu tentei várias galerias, mas ninguém queria me apresentar. Então eu pensei “quer saber? eu vou mostrar meu trabalho na rua”. Muitas pessoas acham que foi fácil, mas não foi uma coisa que aconteceu do dia pra noite.
GN – Mas você acha que o mercado internacional estava um pouco mais aberto para o seu trabalho do que o mercado nacional?
RB – Eu acho que pelo fato dos Estados Unidos ter o maior mercado de arte do mundo, ter tanto dinheiro e uma cultura de comprar mais obras de arte, isso facilitou sim. Porque em outras partes do mundo as pessoas estão muito preocupadas com alimentação e habitação, coisas mais primárias que uma pessoa precisa para sobreviver. Quando você já tem essas coisas, você procura outras para te trazer alegria e bem-estar, então as artes fluem mais.
GN – São muitas desigualdades, mas seria importante se a gente entendesse que a arte também é elemento básico, é garantia de qualidade de vida, né?
RB – Com certeza. Eu penso que a música dá super certo pelo fato de que é uma coisa muito democrática, muito fácil de chegar aos ouvidos de milhões de pessoas. Mas para você ver uma obra de arte em um museu é mais complicado. Por exemplo, se você vê uma mãe, que trabalha o dia inteiro e que quando chega em casa tem que se aprontar e pegar as crianças depois da escola, para só depois poder levar à uma exposição de arte. Quantas pessoas podem fazer isso? Pouquíssimas.
GN – Isso é algo bem presente no seu trabalho. Você conseguiu construir uma arte que atingiu grandes marcas e celebridades, mas também está na “boca do povo”. A questão da acessibilidade é algo importante pra você?
RB – Sim, eu fico muito feliz quando meu trabalho faz parte de grandes coleções. Mas eu sempre quis dividir minha arte com muita gente e não só com a elite das artes.
GN – Você criou um estilo pictórico reconhecível por qualquer um no mundo. Antes de chegar nesse padrão, você já se aventurou por outras possibilidades de linguagens e técnicas?
RB – Eu já tentei várias coisas, mais pelo fato da sobrevivência. Eu tinha que ser bem criativo para criar com o que eu tinha. Então eu pintei muito em jornal, pedaço de madeira, coisas assim que eu encontrava em qualquer lugar. Também pintei muito a dedo e fiz muitas aquarelas na infância. Até na minha casa, no meu banheiro, tem uma foto muito legal, que eu fiz de um buquê de flores que o Paulo Coelho e a Cristina, sua esposa, mandaram pra mim. Hoje em dia eu tiro muitas fotos com minha câmera, mas eu não uso como arte, quem sabe no futuro.
GN – Uma das suas marcas é o uso excessivo de muitas cores vibrantes, que muitos apontam como um reflexo do país tropical ou como uma referência da Art Pop estadunidense. Hoje, depois de tanto tempo nos Estados Unidos, você vê seu trabalho com mais influências estadunidenses ou brasileiras?
RB – O colorido me lembra muito a alegria do Nordeste, o carnaval, o maracatu, coisas assim. E eu gosto muito de artistas como Andy Warhol, Jeff Koons, Matisse e outros artistas que fazem a arte bem alegre. Mas eu acho que eu sou uma mistura, porque você nunca vai poder mudar suas raízes, então estão sempre aqui comigo.
GN – Qual foi a primeira colaboração com uma grande marca que você fez?
RB – Olha, a primeira marca foi Absolut Vodka e para mim foi uma coisa super legal pelo fato de que a primeira campanha publicitária deles foi com o Andy Warhol. E, uma vez, o Michel Brucke, que foi quem trouxe a Vodka para os Estados Unidos, fez um depoimento e ele falou que teve um momento que o artista era mais famoso do que a Vodka. Mas depois a Vodka ficou tão famosa que ela podia fazer um artista famoso. Então foi isso o que aconteceu comigo, quando eu entrei ninguém sabia do meu trabalho, mas depois que eu fiz a campanha minha arte estava estampada em 62 revistas internacionais dos Estados Unidos. Então milhões de pessoas começaram a ver minha arte. Acho que eu sempre estive aberto para fazer esses tipos de projeto, porque se eu não estivesse, acho que hoje em dia talvez você não estaria nem me entrevistando hoje. Então hoje eu sou eternamente agradecido pelo Michel.
GN – Sim, você transita bastante entre o universo publicitário e artístico hoje em dia.
Falando mais especificamente sobre o mercado das artes visuais… dentro do circuito artístico, nós temos como “lei” que para se inserir no mercado, você precisa ser representado por uma galeria. Mas hoje em dia suas obras são vendidas por valores exorbitantes sem depender ter dependido de uma galeria. Eu acho que você é uma exceção, concorda? Como isso foi possível?
RB – Olha, eu nunca parei para pensar que eu sou uma exceção, mas toda regra tem uma exceção. Eu acho que as coisas podem acontecer de muitas formas diferentes, então você tem que estar sempre aberto. Muitos artistas querem começar mostrando seu trabalho no museu ou numa galeria, mas às vezes você pode começar de maneira totalmente diferente. Você pode mostrar seu trabalho em um filme, em uma campanha publicitária, no teatro, etc.
GN – O que você daria de conselho para um jovem artista que está tentando adentrar o mercado de arte?
RB – Que você compartilhe sua obra de arte com todo mundo que você encontrar, quanto mais compartilhar, melhor. Que você não tenha medo, que você vá atrás das coisas que você quer, valorize seu trabalho, mas ao ponto de você não dar acesso às pessoas para te apoiar. Porque muitas vezes, muitos artistas jovens querem cobrar um preço muito alto pelo trabalho, e aí eles acabam tornando impossível de um colecionador poder adquirir uma obra de arte sua. Então você tem que tomar cuidado quanto a isso. E você vai ter que criar obras de arte suficientes para se tornar conhecido, se você criar poucos trabalhos, você realmente vai ficar diluído no meio de trilhões de imagens que são produzidas todo dia. E se sua obra não estiver em um museu e nem em um lugar público, como é que alguém vai descobrir seu trabalho?
GN – Diante de toda a sua trajetória e tantas coisas que já te aconteceram, qual foi o pior momento e o melhor momento que você já vivenciou.
RB – Tiveram vários momentos difíceis, vários, vários, vários. Mas eu tive muita sorte porque eu sempre tive a minha arte para me ajudar. Minha arte realmente mudou e transformou minha vida. Teve muitos momentos lindos também, que eu nunca imaginava na minha vida. Por exemplo, quando fui para a Inglaterra pela primeira vez, eu estava lavando pratos num restaurante. E, numa outra vez, eu estava com meu filho para jantar com a família real, e o príncipe, que agora é rei, me convidou para fazer parte da fundação dele, foi um grande privilégio. Ou quando o Papa Francisco se tornou Papa e me convidou para eu me encontrar com ele. Tiveram muitos momentos maravilhosos, que eu nunca acreditei que viveria e, se não fosse a minha arte, eu não teria chegado lá.
GN – Recentemente foi anunciado o seu documentário. O que podemos esperar dele? Você pode dar mais detalhes?
RB – Eu fico muito feliz que tantas pessoas legais, que eu gosto muito, que colecionam e apoiam o meu trabalho estão falando de mim como artista e como pessoa também. Tem uma parte bem legal que o Arnold Schwarzenegger disse que não queria só dar depoimento, então ele me chamou para ir para Los Angeles e eu fui fazer exercício com ele na Gold’s Gym. Então vai ser importante também, porque vão ter várias coisas que muita gente não sabe sobre mim.