Há muitas possibilidades de entendimento do que é a Amazônia e o que é arte nesse lugar hoje. Nessa Amazônia que também é preta e periférica. Nessa periferia que, de acordo com Uýra Sodoma, é uma floresta. “As pessoas pouco contextualizam a Amazônia urbana. Lá tem de tudo. Como costumamos dizer, são as Amazônias“, explica Rafa Bqueer em entrevista para a revista Zum.
Mostrar ao mundo as tantas Amazônias que existem no norte do país parece ser o maior objetivo das Themônias, coletivo de artistas paraenses LGBTQIA+, e também da primeira Bienal das Amazônias, curada por Keyna Eleison, Vânia Lealm, Sandra Benites e Flavya Mutran – sendo que as duas últimas precisaram sair do projeto na reta final porque assumiram outros compromissos.
Não à toa, as curadoras convidaram as Themônias para comandar o programa de lançamento da primeira edição da Bienal que começa hoje, dia 29 de junho! Elas abrem, assim, a III Convenção das Themônias com uma agenda que inclui exposições, oficinas e mesas de discussão sobre políticas públicas, sustentabilidade, periferias, etnicidades, transgeneridades, mulheridades e o próprio movimento Themônias (programa no fim da matéria).
A ideia é mudar a dinâmica eurocentrada de exposição, elegendo um movimento da rua e de resistência decolonial para assumir a programação de uma mostra institucional que já nasce com uma vontade de sair dos espaços tradicionais; de provocar o debate sobre os usos da cidade a partir da arte; e, de contestar estereótipos sobre a região amazônica.
“Para entender a complexidade espacial das Amazônias, é preciso enxergar, ouvir e entender os povos com as suas formações históricas”, explicam as curadoras. As Themônias são parte desse processo, ocupando um espaço ainda mais marginalizado, dentro e fora do mercado de arte.
Quem são elas?
O coletivo surgiu do encontro entre o global e o local: de um lado, o boom da cultura drag; do outro, a construção da estética de montação da Amazônia. Em 2014, S1mone (Matheus Aguiar) e Tristan Soledade (Maruzo Costa) começaram a realizar a Noite Suja, uma festa que propunha uma montação no campo ampliado, com artistas que adotavam estéticas do grotesco ou precário. “Tudo começou com uma paixão de Maruzo e o Matheus pela cena drag, principalmente a cena local, artistas como Babeth Taylor, Eloi Iglesias, Kastelly Fluor, Shantara Gomes, Shaula Vegas, entre outras”, explica Skyyssime(Juliano Bentes). “A proposta da Noite Suja era criar um espaço de coletivo onde a gente pudesse existir porque nós não sentíamos pertencimento mesmo em ambientes LGBTQIA+ ou de arte. A ideia era construir um outro lugar para se sentir acolhido, com um olhar mais afetivo e cuidadoso sobre o trabalho do outro”, continua.
Bentes revela, ainda, que era uma época em que Belém vivia uma decadência dos espaços LGBTQIA+ e, por isso, elas tomaram as ruas. E o que era resistência, virou arte. Hoje a maioria das ações/ cenas não acontecem em ambientes confortáveis, mas em lugares que representam as tradições da cidade e que carregam preconceitos coloniais – pense no Palacete Bolonha, no Mercado do Ver-o-peso ou no parque de diversões montado em Belém todo ano na época do Círio de Narazé, uma das maiores celebrações religiosas do mundo. Elas ficam, assim, longe da glamourização e mais perto da realidade brasileira.
Rafael Bqueer ressalta importância do programa RuPaul’s Drag Race , lançado em 2009, para contribuir numa divulgação internacional e massiva da cultura drag, pois a série trouxe a possibilidade de discutir questões de gênero e sexualidade de uma forma mais ampla.
Quase 10 anos depois, o coletivo Themônias conta, hoje, com cerca de 200 integrantes. Tratam-se de artistas que se auto definem como “monstruosas”, misturando a estética drag internacional com o tecnobrega e os figurinos do Festival de Parintins. Perucas, pedrarias e vestidos de paetês ou bodies de silicone foram substituídos, assim, com adereços feitos de restos de garrafas, vestidos imensos feitos de plástico, maquiagens com sementes e pigmentos comprados em casas de tempero e plantas locais. “A precariedade é mãe da criatividade”, lembra Bentes.
O movimento já nasceu, portanto, com um sotaque potente e necessário. Hoje as Themônias bebem em tudo: na História da Arte (pense em Andy Warhol); em ícones fashonistas (Leigh Bowery e Rupaul); no cinema (Paris is burning); em produções pop da cultura sentai protagonizadas pelos Power Rangers e Megazords; em movimentos undergound como ballroom; vogue, club kid e punks; e, claro, na cultura paraense – figurinos de carimbó, lendas dos rios e florestas e concursos de São João entram nessas lista. “Um dos nossos pilares é a retroalimentação, pois aprendemos muito umas com as outras. É importante trocar, mesmo com uma irmã novinha que tirou uma ideia sabe-se lá de onde. Isso me atravessa muito mais do que uma referência de fora. Além disso, a cultura local é muito forte e está muito empregada na gente”, explica Bentes.
As referências foram se entrelaçando e elas naturalmente adotaram uma estética “estranhas”, “alienígena” e original que quebrava qualquer padrão – tanto o olhar normativo e hegemônico do que é arte, beleza e performance, quanto a própria ideia de drag glamourososa, próxima do que é considerado uma estética mais feminina. Por isso, são únicas.
O grupo prefere se afastar, inclusive, da descrição “drag queen” para definir suas produções, já que, apesar de muito mais conhecido do que “themônia”, o termo vem carregado de um estrangeirismo que não dialoga com as montações no Pará. Mila Milambe (Marckson de Moraes) explica que o coletivo busca romper com a estética das drag “clássicas”, “robotizadas” e “americanizadas” que a sociedade de massa globalizou. “Negamos essa coisa colonial e começamos a criar a nossa própria identidade, o nosso jeito de performar, de dublar, de maquiar e construir figurinos”, pondera.
No campo da linguagem, aliás, as Themônias também desenvolveram as próprias expressões e sotaques para se comunicar de formas diferentes, renegando e distorcendo a língua do colonizador. Surge, assim, um verdadeiro glossário de palavras que dialogam com referências sonoras próprias da Região Amazônica, com a cultura de massa e também com o dicionário social LGBTQIA+ do pajubá.
Os “hierogritos”, por exemplo, são importantes nesse novo vocabulário: o que para alguns ouvidos pode parecer gritos, ou berros que remetem a uma grande revoada de furiosas araras, é, na verdade, um sinal sonoro de anunciação e de aproximação do coletivo das Themônias. “É uma forma de assustar os cis/hetero/conservadores, espantar os agouros, extravasar momentos de gozo e felicidade, ou até mesmo pedir socorro”, explica Bqueer.
Outra palavra criada pelas Themônias é “Megazord”. Ela é usada para quando elas sentem que precisam se unir para se protejer ou deslocar. Isso porque, na cultura sentai, o megazord é uma arma poderosa de ataque que se forma da união de diferentes super-heróis.
O nome: identidade e descoisificação dos corpos
Mas de onde vem o nome “themônia”? Corpos LGBTQIA+ geralmente são demonizados pelo cristianismo que é, ainda hoje, a maior e mais influente religião do mundo. A imagem do Demônio representa o pecado, aquilo que não é aceito por não seguir padrão conservador e tradicional. Se assumir “Themônia” é, então, uma forma de ativismo, uma tentativa de tornar vivas e visíveis as identidades que sempre foram destituídas de suas humanidades.
“A demonização foi uma metodologia usada pela Igreja como justificativa para a violência colonial. Não é de hoje que corpas ameríndias são demonizadas. No século 20, o escritor Alberto Rangel descreveu a Amazônia como um Inferno Verde (1908), reafirmando o conceito cristão de um ambiente de condenação e sofrimento. As Themônias são um levante anticolonial, uma resposta crítica ao olhar civilizatório. Existir quanto monstruosidade, quanto seres não brancos e não europeus, há séculos vem sendo sinônimo de resistência”, explica Bqueer em texto para a revista Select. Não se trata, portanto, de um show, mas de um movimento político, uma disputa por presença, por território, pela possibilidade de expressão de identidade. Elas criam, assim, dentro desse movimento, suas próprias famílias ou espaços de acolhimento, formando redes de apoio para as que foram expulsas de suas casas ou estão iniciando na arte da montação.
Sarita Themônia escreve na revista Themônia: “Vivendo a montação como determinante na descoisificação dos corpos, e com isso o corpo como lugar de visibilidade de outros símbolos, temas e empoderamentos, a montação Themônia nos liberta a custo de muito desconforto, nos exigindo diferentes movimentos e posturas, colocando o nosso corpo em função da montação, dando suporte e evidência, provocando outra relação das pessoas com a nossa arte, com o corpo e, consequentemente, ressignificando a relação dos corpos montados com o lugar e as pessoas, potencializando, assim, um espaço favorável a comportamentos não Domesticados”.
O debate teórico gira em torno de questões de gênero tendo nomes como Judith Butler e Paul Preciado como norte entre os membros do grupo. Mas elas próprias produziram, durante os últimos anos trabalhos acadêmicos que inspiram suas manas. É o caso do próprio Juliano Bentes, da Ana Paula Gomes, de Emanuele Correa, de Allyster Fagundes, Sarita (Gabi Luz), entre outras. E as denúncias são diversas: elas apontam para crimes crimes ecológicos, assédio e deferentes formas de violência – sempre questionando processo de colonização.
Trata-se, afinal, de um grupo que lida diariamente com a distopia, em oposição ao imaginário romantizado da Amazônia, tentando fugir de estereótipos de uma floresta verde, deslumbrante, abundante e pura. Mas propõe também, das cinzas desse desastre, um recomeço.
Estrangeiros em todo lugar
Semana passada Adriano Pedrosa, curador da 60ª Bienal de Arte de Veneza, anunciou o tema a exposição principal que vai abrir no Arsenale em 2024: Estrangeiros em todo lugar. A ideia é propor uma discussão sobre o que é ser estrangeiro expondo tanto as migrações forçadas feitas durante as diferentes diásporas humanitárias; quanto a situação daqueles que se sentem estrangeiros em seu próprio país. Os estranhos, alienígenas, refugiados em seu lugar. Entram, aqui, pessoas pretas, indígenas, LGBTQIA+ ouqualquer indivíduo que foge dos padrões branco cis-heteronormativos.
E é nesse lugar onde lutam as Themônias que se montam propositalmente para potencializar o estranhamento e o não pertencimento. Vale lembrar que a estimativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é 35 anos. E mais: a cada três minutos uma pessoa LGBTQIA+ sofre algum tipo de violência. O combate a LGBTQIA-fobia é, portanto, mais que urgente. Mas essa não é a única forma de marginalização discutida entre elas. Há, ainda, o apagamento do sudeste. Afinal, sabemos que muitas precisam migrar para existir como artistas, mas o forçado fluxo físico não as desconectam do lugar de origem.
Como estrangeiras unidas, elas também desenvolveram uma linguagem própria. Pajubá é um vocabulário empregado, de forma estratégica, pela população LGBTQIA+, que incorporaexpressões do iorubá e de religiões de matriz africana, com diversas variações de acordo com a região do país. “Trabalhamos com diversas linguagens de guerrilha, como a linguagem do I. Mas é tudo muito vivo, construímos neologismos semanalmente. Isso porque muitas vezes estamos em lugares que não podemos falar certas coisas, por isso criamos nossa própria língua. É mais uma estratégia para invadir espaços”, revela Bentes.
“Como o Sudeste é um espaço de poder dentro do país, então a gente hackeia o Sudeste para poder falar no nosso próprio território. É uma forma de existir. Porque a gente precisa existir primeiro para depois poder movimentar a indústria, a partir de outras linguagens, outros pajubás, outras possibilidades de arte”, explica Bqueer. “Com o meu trabalho sozinha, eu não vou destruir as instituições ou transformar a história da arte. Mas, a partir de um incentivo meu, talvez outras pessoas possam se reconhecer. É sobre ocupar esses espaços e mostrar que é possível sim ser artista vindo desse lugar não hegemônico”, completa.
PROGRAMAÇÃO III Convenção das Themônias
Nos dias 5, 6 e 7 de julho, as atividades terão como tema a sustentabilidade. Primeiro, nas oficinas “Um corpo político de Intervenção” e de maquiagem – feita com pigmentos naturais extraídos da floresta e da terra – comandadas por Celeste Volúpia e Condessa Leonardo Botelho, respectivamente.
Nos dias 12 e 13, o tema será Periferias, com oficinas sobre “Vivências circenses” (para público infantil) e Stilleto. Nos dias 19 e 20, o tema será sobre Etnicidades, com oficinas sobre tranças (para público infantil) e expressão corporal.
Nos dias 26 e 27, o tema será Transgeneridades, com oficinas de customização e Corpo Themônia. Já em agosto, os dias 2 e 3 serão dedicados ao tema Mulheridades, com oficina sobre produção.
Nos dias 9 e 10, a temática será o Movimento Themônias, com oficinas sobre Cabeças e costura criativa. *O grupo paraense conta hoje com nomes como Rafael Bqueer, Tristan Soledade, Flores Astrais, Sarita Themônia, Gigi Híbrida, Cìlios de Nazaré, Skyyssime, Monique Lafond, Pandora Rivera Raia, La Falleg Condessa, Xirley Tão. O movimento se ampliou pelo Norte abrigando, também, nomes como Uýra Sodoma, de Manaus, “entidade” criada por Emerson Pontes também se considera uma themônia.