No último sábado, dia 26 de novembro, foi noticiado o trágico acidente que levou a artista gaúcha Rochelle Costi a óbito aos 61 anos de idade. Costi foi vítima de um atropelamento por motocicleta quando saía da exposição Arte é Bom no Museu da Imagem e do Som em São Paulo, onde está exposta uma de suas obras. Em memória e homenagem à sua grande trajetória, trazemos aqui um breve resumo de seu legado para a cena artística brasileira.
Nascida em Caxias do Sul, em 1961, Costi foi acometida pelo estrabismo desde muito cedo, precisando se submeter a uma cirurgia nos olhos e a diversos exercícios óticos aos três anos de idade. Já adulta, movida pelo interesse de registrar sua visão de mundo, a artista chegou a trabalhar para importantes veículos de imprensa como fotojornalista em São Paulo e, depois, a técnica a levou ao universo das artes visuais. Certa vez, em 1985, em ocasião de suas fotografias expostas no Espaço Funarte, ela explicou para o Estadão que seu interesse pela linguagem audiovisual nasceu como alternativa por não se considerar boa desenhista.
A imagem em movimento, como o vídeo, também passou a ser quase uma extensão de seus olhos: “O que acho interessante no vídeo é que ele acompanha a trajetória do olhar em busca do acontecimento.” – já revelou Rochelle.
Hoje é possível perceber que a experiência cirúrgica, mesmo que vivida quando muito nova, inspirou algumas de suas obras mais recentes, como Desvios (2007), que a artista desloca para o contexto artístico uma coleção de imagens de “antes e depois” de pacientes que foram submetidos à mesma cirurgia entre as décadas de 1930 a 1970. Ou ainda a própria Reprodutor (2008), em cartaz no MIS, que é inspirada nos exercícios óticos feitos na infância e que convida o público a reproduzir, em desenhos, fotos de diversos rostos de artistas, vendo-as através de vidros coloridos que refletem a imagem na folha.
Seu maior legado parte do gesto de colecionar, seja imagens, por meio da fotografia, ou objetos triviais deslocados das cenas cotidianas. Assim, sua obra provoca o olhar do espectador antes automatizado. Em Desmedida (2009), a artista fotografa uma casa de madeira em miniatura, encontrada em um site de venda de peças usadas, com objetos em escala que confundem o espectador sobre a realidade da cena. O limite entre ficção e realidade torna-se ainda mais tênue quando a série foi instalada no espaço expositivo com intervenções de madeira na arquitetura, tornando a galeria uma extensão das imagens apresentadas.
Para além dos tamanhos e das características próprias da instalação, linguagem amplamente explorada por Costi, muitas de suas obras possuem um caráter cenográfico, que beiram a teatralidade. Interiores, de 1983, é um dos primeiros trabalhos que a artista faz nessa direção. Nele, ela usou cortinas de chuveiro como suporte para apresentar espelhos com decalques, tampa de mala, armário de banheiro, páginas de álbuns, entre outros objetos e imagens. Essa instalação integrava a exposição Vivendo Retrato e foi mostrada isoladamente no 25º Salão de Artes Plásticas do MAM/RJ. Na ocasião ela recebeu uma crítica na imprensa local, que dizia que era “uma obra de gosto duvidoso cheirando a casa mal afamada” e para a artista isso “pareceu perfeito”.
Mas foi a partir de 1990, com a participação em importantes mostras como o Panorama da Arte Brasileira do MAM, em São Paulo, e a Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, que a carreira de Costi teve um grande impulso e passou a ter maior projeção no cenário artístico. Assim, no final da década, a artista integrou a 24ª Bienal Internacional de São Paulo e a 6ª e 7ª Bienais de Havana, entre outras mostras internacionais.
Mais recentemente, durante o início da pandemia no Brasil, em 2020, a artista, que estava acostumada a se debruçar sobre as temáticas de residência, repensa o lugar que mais nos cercou durante o período de isolamento e o desconforto ambiental. Então ela concebeu a série Casa, onde mais uma vez fotografou o interior de uma pequena casa, mas desta vez, feita artesanalmente como ex-voto na celebração do Círio de Nazaré em Belém do Pará, norte do Brasil. Segundo o artista Alexandre Sequeira, Costi concebe “uma ficção baseada numa experiência da realidade (…) O jogo criativo consiste em colocar em suspensão todas as certezas projetando-nos em um território onde condições antagônicas se apresentam como possibilidade”.
“Quando se fala em memória, remete-se a algo do passado, pessoal, íntimo. Mas eu, quando penso em memória, penso na comida que como, nos detritos que produzimos diariamente, em tudo que passa por nós.” – afirmou a artista, certa vez em 2005. Rochelle Costi expôs o seu cotidiano ordinário como obra e hoje, ainda que sua perda seja inestimável, sua memória se faz presente em nossa intimidade por meio de diversos acenos que nossa rotina sinaliza em direção à sua produção.