O que vamos fazer com a liberdade que tanto desejamos conquistar? Como será o futuro das nossas cidades e sociedades, ainda regidas pela herança modernista e sua distopia? Luiz Roque abriu a individual República, no Pivô, com trabalhos que nascem a partir de discussões sobre corpos políticos que habitam sociedades em ruínas. E é a partir do corpo de seus personagens, portanto, que o artista sugere reflexões sobre a biopolítica, a falência do modernismo, a cultura da imagem e a problemática de automação ou domínio da inteligência artificial.
Interessado pela ficção-científica como uma forma de refletir sobre questões geopolíticas, sociais e históricas e para especular sobre futuros possíveis, o artista apresenta sete obras audiovisuais, sendo duas inéditas no Brasil. O filme que nomeia a exposição nasceu com uma pesquisa sobre o próprio bairro onde o artista mora e onde está localizado o Pivô, a República; e estudos sobre os indivíduos que habitam sua emblemática praça. Nela, concentra-se uma grande comunidade que migrou para São Paulo para fugir de medos e buscar desejos. Roque parte, então, das aspirações sexuais e identitárias/estéticas para propor uma visão do corpo como território de disputas e transformações políticas.
O filme é estruturano a partir de uma entrevista ficcional com a performer Marcinha do Corintho, diva dos shows de travestis, atuante desde a década de 1980, que chegou a migrar para a Europa para trabalhar, mas acabou voltando para a República. Seu rosto girando na tela circular é combinado com cenas do oceano que separa os continentes; de outra travesti batendo cabelo; da turma que caminha no bairro aos domingos; e, ainda, imagens de um personagem emblemático que ganha ar escultural apoiado na fonte da praça.
Em um dado momento a Marcinha revela que está viciada num remédio inibidor de hormônios masculinos chamado Androcur que, segundo ela, elimina também qualquer desejo “Não faz mal a ninguém, só deixa você bonita”, ressalta a personagem. “Nesse momento, o trabalho deixou de ser sobre um macroespaço, o bairro, e passou a ser sobre um microespaço, que é o corpo dela.”, explica Roque. Esta declaração acabou transformando o filme e iniciou um diálogo com Ano Branco, também presente na mostra, além de uma discussão sobre a chamada “sociedade farmacopornográfica”. O termo foi cunhado pelo filósofo feminista transgênero Paul Beatriz Preciado, que dá uma palestra ficcional na abertura de Ano Branco e é o ponto inicial para construir um enredo ambientado no ano de 2031 e que apresenta uma jovem se submetendo a uma análise clínica de um médico-robô como personagem. Na época de criação do filme, vale lembrar, a transexualidade ainda era considerada um transtorno de personalidade pela OMS – isso mudou apenas em 2018.
“Queria discutir como o capitalismo incorpora a indústria farmacêutica para controlar o nosso corpo. Em Ano Branco o Estado é representado pela própria tecnologia, a máquina. No mesmo filme tínhamos a Beatriz Preciado (que hoje é Paul B. Preciado) falando que precisamos tomar conta do nosso corpo da forma como quisermos. Anos depois, em República, a Marcinha assume que toma as decisões sobre seu corpo. No entanto, ela chega ao extremo que é a inibição do desejo”, explica o artista. Ou seja: Se em Ano Branco, a autonomia sobre o próprio corpo significava a maior expressão de liberdade; em de República, esse poder já está conquistado, mas significa outra coisa e apresenta uma situação que, em 2020, ainda é difícil de assimilar. “Mas não há nenhum tipo de julgamento. Não digo que trata-se de um plano que não deu certo, mas acho que estamos num momento super complexo de poder tomar as decisões que a gente quiser e viver plenamente como a gente quer! Até o ponto de querer ser apenas bonita, mesmo sem sentir tesão”,
Roque optou, portanto, pelo cenário futurista para levantar uma discussão sobre a bioética e a ingerência do Estado sobre os corpos como forma de controle político e social. Em Zero, realizado durante uma residência artística em Dubai, nos Emirados Árabes, o artista também propõe um clima de futuro distópico. O personagem principal do filme é um belíssimo cachorro que viaja sozinho a bordo de uma aeronave que sobrevoa o deserto com ar pós-apocalípticos em torno de uma espécie de oasis de arranha-céus futuristas. As superfícies reflexivas, limpíssimas e brilhantes contrastam com o céu, ao fundo, tomado pela poeira desértica. O artista cria, então, uma atmosfera em que a tecnologia aponta para a superação do próprio conceito de humano, na qual o animal à deriva – talvez a última vida restante – aparece como um alerta pertubador sobre as consequências de grande parte das decisões políticas e economicas do século XX.”A ausência da presença humana em um dos filmes e a ausência do desejo sexual no outro parecem insinuar que estamos nos aproximando do que talvez seja um novo grau zero da espécie – seja ele uma revisão completa ou mesmo sua extinção”, reflete a curadora Fernanda Brenner. Seus personagens habitam estes cenários pós-apocalipticos e distópicos estão, muitas vezes, em diálogo com elementos da história da arte e arquitetura ligados ao modernismo. A ideia é pensar no futuro das cidades a partir do movimento e seu legado, pois ele estava associado a um futuro utópico que nunca alcançamos. Apesar de propor uma revisão das políticas públicas e privadas do nosso tempo, especialmente das que envolvem a liberdade de identidade e de desejos, o artista não se propõe, entretanto, a criar uma obra premonitória ou alarmista. Mas ele deixa claro que seu olhar parte de um presente extremo e pulsante. “Não digo que trata-se de um plano que não deu certo, mas acho que estamos num momento super complexo de poder tomar as decisões que a gente quiser e viver plenamente como a gente quer!”, reflete o artista. “Até o ponto de querer ser apenas bonita, mesmo sem sentir tesão”.