“Você disse que estava com medo. Com medo de que não houvesse mais tempo para viver, já que os anos seguem passando, ainda que tudo pareça estagnado. Eu me lembro que pensei, mas não soube colocar em palavras, em um medo complementar ao seu: o de que não houvesse futuro para as crianças aqui de casa crescerem; que de alguma forma elas estivessem em um mundo que já consumiu todo o seu futuro” escreveu Paulo Miyada numa carta para a Anna Maria Maiolino. Ela respondeu que é sim possível viver com medo, mas é importante não perder a fala e não abandonar os exercícios de criação para seguirmos vivos – não de forma apática, mas ativa, potente, resistente. Numa busca por uma existência ativa, a dupla lançou hoje a revista digital Presente que renega, de certa forma, a existência apática, enrijecida, impotente em tempos tão difíceis…apesar do medo. “Escolhemos o dia da morte de Tiradentes por um dia ligado a uma história de luta, mas também um dia de morte, luto, violência de estado”, ressalta o curador.
No início do isolamento social, num tempo de incertezas e suspensão de projetos, o curador trocou uma série de cartas com a artista onde falavam sobre esse medo de uma dupla morte: “não se trata de morrer e nem mesmo de matar, mas de matar a própria continuidade, matar as condições que se siga vivendo; matar o coração, matar a terra, o extermínio das espécies, o extermínio dos modos de viver e morrer juntos. A dupla morte é o assassinato de continuidade, é o assassinato da possibilidade de continuar”, escreveu a filósofa Donna Haraway. “Uma coisa é não poder enrijecer uma imagem de futuro, outra coisa é exterminar qualquer horizonte de futuro. Isso compromete a existência no presente. Se não há horizonte, se você não tem a certeza que vai comer no jantar, não tem mindfulness. Não tem como aterrissar no presente. O que estamos vivendo é também um sequestro do próprio presente. Você apaga a história, interdita o futuro e, assim, só resta uma existência mecânica e submissa”.
A publicação é composta essencialmente por trocas de correspondências, incluindo potentes poemas de Edimilson de Almeida Pereira e imagens de trabalho dos artistas que de alguma forma permeiam as conversas, como a Castiel Vitorino Brasileiro. Para finalizar, uma tradução do texto A teoria da ficção como sacola no qual Ursula K. Le Guin defende um modelo de produção de conhecimento, e construção de uma sociedade, a partir da ideia de “sacolas”, coletar coisas do mundo, e não da guerra ou da conquista.
A psicanalista Tania Rivera e Anna Maria Maiolino tecem uma conversa sobre o próprio trabalho de Anna e o momento que vivemos. “Me pergunto quais seriam suas palavras e signos gráficos, hoje – nesta espécie de mapa / grade de ferro que voltou a cerrar-se ao nosso redor. E como você o “rasgaria”, ou nele abriria um ponto ou um ângulo pelo qual pudéssemos nos esgueirar e fugir. Diferente de mim, Anna, você viveu a guerra, a penúria, a imigração e tudo isso entremeia e compõe a teia de sua poesia, em camadas de tempo e acontecimentos que são absolutamente íntimos e, no entanto, radicalmente comuns”, escreve Tania. “Hoje, se eu fosse realizar mais um novo capítulo da série dos Mapas Mentais, iniciada em 1971, o intitularia nós. Bastaria-me, para realizá-lo, um campo imaginário branco, como uma folha de papel, sem demarcações, “sem margens”. Seria um campo aberto, infinitamente expandido, infinito como o universo. De norte a sul, de leste a oeste, desenhado sem loteamento, sem quadriculados, sem fronteiras”, responde Anna.
A conversa entre Lisette Lagnado e Paulo caminham para uma discussão sobre como lidar com produções consideradas não psycho normativas, consideradas fora do campo do que é “normal”. Afinal, estamos lidando apenas com uma pandemia viral que é acompanhada de uma pandemia de fragilidades psíquicas. O diálogo acabou sendo conduzido por trocas sobre o trabalho de Pedro Moraleida – um artista que ambos os curadores estudaram recentemente.
Com Dalton Paula, Paulo debate a própria vulnerabilidade – assunto que acabou por permear toda a publicação. “O quanto se assumir vulnerável é uma condição para lidar com o mundo e o quanto a incapacidade de admitir ou ceder a essa vulnerabilidade tem gerado monstros brutais. A artista Paloma Durante e a bailarina Pat Bergantin desenvolvem um diálogo a partir do projeto Corpo Antena, idealizado por Pat há alguns anos, com o objetivo de exercitar o bodyfulness ativando a capacidade de percepção e conexão não só entre corpo e mente, mas entre corpo e sociedade.
O projeto é, portanto, um esforço de nutrir uma sensação de presente que passa pelo fato de saber que neste momento não estamos sozinhos, sempre haverá outra pessoas passando por isso dispostas a ouvir e trocar.