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Paula Borghi fala sobre a exposição “roda pé”

Mostra online idealizada junto ao ARTEQUEACONTECE reúne 20 artistas para refletir sobre o mal estar político, social e econômico que vivemos no Brasil

por Beta Germano
8 minuto(s)
Paula Borghi
Paula Borghi

Era março de 2020: registramos a primeira morte causada por um vírus que já assombrava boa parte do mundo, o Covid 19.  Naquele momento, não tínhamos tantas informações sobre a doença e tampouco uma perspectiva de vacinação. Ainda assim, era assustador ver a quantidade de “curas” que algumas religiões, especialmente a Evangélica, estavam “proporcionando”. 

Poucos meses depois a artista Natalie Salazar criou uma palavra-poesia que refletia o momento:  jeSUS ressalta a importância dos funcionários do SUS e questiona aqueles que colocam a fé acima da ciência. Nascia o roda pé, exposição online curada por Paula Borghi e realizada em parceria com o ARTEQUEACONTECE , composta por 8 obras elaboradas por 20 artistas a partir de diferentes palavras-poemas criadas pela artista e transformadas em música junto à curadora. 

“Natalie escrevia as palavras-poemas em resposta a algumas das atrocidades próprias do Brasil. Então, cada palavra-poema foi enviada para um artista para serem materializadas no formato de um GIF. Após isso, nós escrevemos as letras das músicas, que posteriormente seriam musicadas por outrxs artistas. Quando finalizadas, as músicas eram encaminhadas para outrxs artistas elaborarem os vídeos”, explica a curadora.

Confira a exposição aqui e a entrevista abaixo para saber mais sobre o projeto.

Qual é o papel da arte, na sua opinião, em momentos distópicos como o que estamos vivendo?

Diante de momentos distópicos como o que estamos vivendo, é possível afirmar que pensar e trabalhar com arte é garantia de sanidade, como já dizia Louise Bourgeois. Isto porque a arte é uma ferramenta de imaginação crítica de valor inestimável, que tem a capacidade de atuar na esfera micropolítica. Ou seja, agir em nossa subjetividade para potencializar a vida. Alguns trabalhos de arte, que se propõe a agir de forma potencializadora, conseguem desenvolver performatividades que imaginam, desenham, projetam e anunciam mundos por vir. 

Neste sentido, a arte pode despertar em nós o desejo de uma vida com mais justiça social e alinhada com as ecologias do mundo. E quando falo em justiça social, lê-se aqui também justiça racial, de gênero, sexualidade, religiosidade e etnicidade, uma vez que estes são conceitos intrínsecos. Assim, não é de se estranhar que a extrema direita esteja tão interessada no desmanche da cultura, uma vez que a arte (em seu sentido amplo e interdisciplinar) é uma ferramenta que liberta o inconsciente dos valores hegemônicos, coloniais e patriarcais; que há mais de cinco séculos vem estruturando nossa sociedade brasileira. Ao nos libertarmos destes valores, o autoritarismo, o conservadorismo e a moral tradicional, por exemplo, não conseguem mais exercer seu poder nocivo e destruidor sobre nós, sobre a vida em sua diversidade. 

Acredito que alguns trabalhos de arte têm a capacidade de agir micropolitcamente de forma potencializadora, a fim de colaborar na libertação do inconsciente e no desenvolvimento de novas formas de nos relacionarmos com o mundo, ou melhor, de criarmos mundos. 

Como nasceu a ideia de criar o roda pé? Por que você escolheu o nome roda pé para o projeto?  Você separa partes da palavra, “roda” e “pé”, que por si só têm seus significados. E repete esse processo nas palavras-poemas… qual é o objetivo de criar esses jogos lexicais? 

O roda pé, projeto idealizado em parceria com a artista Natalie Salazar, vem do desejo de manter a nossa sanidade e de criar “bombas semióticas” para agirem na subjetividade, a fim de potencializar a vida em seu entendimento político e diverso. Uma exposição que insurge deste mal estar político, social e econômico em que nos encontramos. 

Natalie Salazar sugeriu roda pé como nome do projeto, ela o tira deste lugar de prestador de esclarecimento e de considerações complementares e o traz como protagonista. Isso porque, quando escrito de forma separada, mantêm-se a mesma sonoridade de “rodapé”, porém seu sentido muda por completo. Da forma como o escrevemos, é como se estivéssemos convidando as pessoas para agirem; para rodarem o pé.

E sim, este é um processo que se repete nas palavras-poemas jeSUS, Engadação, chapa-ADÃO e Marias, homônimos dos trabalhos de arte que dão corpo ao roda pé. Este  processo é consequência direta da produção artística de Natalie Salazar, que vem trabalhando com palavras desde 2010, criando jogos lexicais, como você bem mencionou. Ela é uma artista completamente apaixonada pelas palavras, é uma poeta. 

Algum fato específico instigou na criação da primeira palavra-poesia? Qual foi ele?

Este projeto começou em maio de 2020, poucos meses após o início da pandemia do covid-19, com a palavra-poesia jeSUS. Naquele momento, não tínhamos tantas informações sobre o vírus e tampouco uma perspectiva de vacinação. Ainda assim, era assustador ver a quantidade de “curas” que algumas religiões, especialmente a Evangélica, estavam “proporcionando”. 

As “curas” iam desde a venda por mil reais de um grão do feijão milagroso do pastor Valdemiro Santiago, até orações feitas na televisão aberta durante o programa “SOS da Fé” do pastor Romildo Ribeiro Soares, em que ele falava das propriedades “milagrosas” de uma oração feita por ele somada à ingestão do copo de água consagrada, enquanto pedia doações aos fiéis.

A garantia de que a fé religiosa curava a covid-19 se alastrou de forma tão voraz no Brasil, que mesmo hoje com quase 600 mil mortos pelo vírus, parte dos evangélicos resiste à vacina. Além da adesão do discurso negacionista e do tratamento precoce (comprovado cientificamente ineficaz contra o vírus), muitos fiéis interpretam um trecho bíblico do Apocalipse de que a “besta” terá uma marca nas pessoas,  uma marca que é a vacina. 

Enfim, estamos vivenciando a perda da laicidade no Estado Democrático, a legitimação da charlatanice em nome da fé e a instauração da pós-verdade. Cada vez mais, os fatos comprovados cientificamente têm menos influência no povo brasileiro que os apelos às emoções e às crenças pessoais.  

Então, por tudo isso que foi dito, a primeira palavra-poesia que Natalie Salazar criou foi jeSUS. É uma palavra-poesia que ao mesmo tempo destaca em Jesus a presença do SUS, do nosso Sistema Único de Saúde, e deixa o “je” em minúscula, remetendo seu significado em francês: eu. Nas palavras da artista “Num momento em que nosso presidente da república negava (e ainda nega) a pandemia, desrespeitando (e ainda desrespeita) a vida, os profissionais do SUS se transformaram em nossa verdadeira  salvação! Sendo atravessada por isso, como não se implicar? Então, jeSUS é uma forma de honrar e apoiar o SUS.”

Além de tudo isso, vale ressaltar o contínuo desmanche do SUS e a crescente intervenção religiosa em todas as esferas públicas, corroborando no retrocesso das políticas sanitárias, culturais, sociais, econômicas e assim por diante… 

Por qual motivo você quis misturar artistxs de diferentes áreas? Qual diálogo/encontro mais te surpreendeu? 

Estruturar uma exposição que possa tanto habitar um cubo branco como a tela de um computador ou celular, por exemplo, envolve pensar as particularidades destes ambientes. Uma vez que não há muito sentido fazer uma exposição online que se comporte como um PDF dos trabalhos de arte, misturar artistas de diferentes áreas vem da compreensão dos diferentes modos de atuação dentro destes espaços: físico e virtual. 

Por exemplo, Livia La Gatto e Renata Maciel são duas artistas da cena que atualmente desenvolvem uma produção artística voltada, sobretudo, para o Instagram.  Já Pedro Gallego e biarritzz têm uma pesquisa que se aprofunda no universo dos memes, GIFs e vídeos de internet. Enquanto que Mavi Veloso e Igor Marotti apresentam uma vasta produção de vídeos para o YouTube. Ou seja, são artistas que estão conectadxs a uma produção estética e conceitual própria do universo online.

Além disso, a maioria dxs artistas que estão no projeto já trabalham de modo interdisciplinar, muitas vezes integrando performance, artes visuais, educação, dança, teatro, música e design nas práticas artísticas. Portanto, a presença dessas pessoas no projeto já traz essa característica multidisciplinar. 

Foi muito bom trabalhar com todxs, sempre uma boa surpresa as interlocuções que se instauraram. Mas é impossível eleger um diálogo que mais tenha me surpreendido. Uma das principais características deste projeto é que todos trabalhos apresentam autoria compartilhada, mesmo que sua origem parta de uma palavra-poesia da Natalie Salazar. A autoria compartilhada é  característica fundamental  do projeto.

Gif é arte? Por que?

Depois de Marcel Duchamp, tudo aquilo que é feito com a intenção de ser arte, mesmo que tenha nascido de uma apropriação, é arte. Então, por que o GIF não seria arte? O GIF faz parte das chamadas “novas mídias”, contemporâneas ao momento em que nos encontramos. Me parece que a questão não é justificar o GIF como arte, mas sim perceber os sintomas desta estética digital. O GIF é marcado por características próprias da linguagem digital, como a imagem em movimento, a luminosidade da tela, o pensamento computacional, a tecnicidade do momento etc… 

Vale mencionar, que algumas pessoas dizem “GIF arte” para que não haja dúvidas de que se trata de um trabalho de arte. Porém, não dizemos “pintura arte” para nos referirmos a uma pintura, mesmo que a pintura não se restrinja apenas a arte. Então, acredito que em pouco tempo não precisaremos dizer “GIF arte”. Até lá, Duchamp é nosso melhor advogado. 

As obras podem ser compradas? Como?

A comercialização dos trabalhos de arte não é o propósito do projeto, mas sim sua circulação. Até porque, todxs xs artistas já receberam pelo trabalho, uma vez que se tratam de obras comissionadas. Porém, no sistema econômico em que nos encontramos, parece não haver nada que não possa ser vendido. Então, se alguém quiser comprar um trabalho de arte que está no mundo de forma gratuita e online, sinta-se à vontade para entrar em contato.  

Você pode explicar como foi o processo de criação de cada um deles ao lado da artista Natalie Salazar? Como vocês escolheram o gênero musical para cada palavra-poema, com cada momento trágico da história do Brasil? 

Como disse, roda pé surgiu em maio de 2020, poucos meses após o início da pandemia do covid-19. Ele foi acontecendo de forma orgânica, ao longo de mais de um ano de trabalho durante a interminável pandemia. Foi um projeto que aconteceu com muita calma, porque não havia sentido para pressa. A única regra, na falta de uma palavra melhor, foi a compreensão de que o projeto teria 4 palavras-poemas de Natalie Salazar, não mais do que isso. 

Então, cada palavra-poema dizia para a gente o gênero musical que o trabalho pedia. Por exemplo, jeSUS chamava o rap com um refrão gospel, pois ao mesmo tempo em que ele faz uma espécie de denúncia, também faz uma menção direta a razão evangélica de poder. Enquanto que Engadação tinha que ser um sertanejo, pois este é o gênero musical predileto do agronegócio. Já chapa-ADÃO fala sobre o feminismo de forma interseccional e pedia a batida de funk, que comumente é regado por palavras machistas. Por fim, Marias veio como MPB, que é o gênero musical que mais fala sobre ser mulher, mesmo que muitas vezes na voz de homens. De certa forma, há uma provocação na escolha dos gêneros musicais. 

Assim, Natalie Salazar escrevia as palavras-poemas em resposta a algumas das atrocidades próprias do Brasil. Então, cada palavra-poema foi enviada para um artista para serem materializadas no formato de um GIF. Após isso, Natalie e eu escrevemos as letras das músicas, que posteriormente seriam musicadas por outrxs artistas. Quando finalizadas, as músicas eram encaminhadas para outrxs artistas elaborarem os vídeos. Foi um processo que passou por muitas etapas e muitas pessoas.  Sem mais, pode-se dizer que roda pé vem do desejo de insurgir deste mal estar, que cada vez mais se estabelece de forma violenta e letal. Aliás, quantas mortes ainda faltam para o impeachment?

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