Já que em temos de quarentena não podemos ir até as galerias, vamos levar as galerias até você! A primeira mostra que vale a visita virtual é Construção, que abriu na Mendes Wood antes da Pandemia. Nós visitamos e adoramos!
Organizada por Renato Silva, a coletiva traz artistas e trabalhos que aclamam ou apontam para uma resistência e empoderamento daqueles que são marginalizados – pense em negros, indígenas e a comunidade LGBTI+ – no Brasil e no mundo. Confira abaixo 15 obras e artistas presentes na mostra:
1.Ruína Modernista de Adriana Varejão
Conhecida por investigar e rever as histórias do Brasil questionando as atrocidades e violência do colonialismo, Adriana Varejão pesquisa narrativas por meio do barroco brasileiro. Varajão rasga os azulejos ( herança portuguesa!) para revelar as entranhas e vísceras agressivas da história oficial – sempre questionada pela artista -, questionando a forma como a ideia de nação foi construída. A referência ao modernismo no título do trabalho (à esq.) passa pelo desejo de questionar o movimento no Brasil que se transformou numa espécie de utopia fracassada. Afinal, tudo que nasce nos trópicos já é ruína.
2. Agombenero, Hariel Revignet
Nesta composição ao fundo, Hariel Revignet trabalha com colagem e pintura com o objetivo de construir tempos-espaço para ativar curas em corpos oprimidos. A pesquisa anscestral ( e espiritual) começa na própria árvore genealógica do artista, focando nos laços a partir de uma perspectiva matriarcal. O resultado é o encontro de duas origens: a africana e a indígena. “A pesquisa nasceu como uma forma de recuperar uma árvore decepada por violências coloniais, patriarcais, processos de objetificação e escravização que criaram seivas de sangue”, explica o artista que, no primeiro momento, direcionou suas análises para as questões do sangue e da dor. No entanto, ao longo da pesquisa, percebeu que a própria árvore, um elemento ancestral, estava intrinsecamente ligada à memória da família: “Me atraiu significados e arquétipos femininos ligando árvore e divindades femininas em diversas culturais afro-diásporicas-ameríndia”, explica o artista. A percepção de distanciamentos e conexões transformou a propria elaboração do trabalho em processo de cura.
3.Requiem, de Antonio Obá
Interessado em criticar o sincretismo religioso que permeia nossa história e confrontar situações ligadas ao preconceito étnico, Antonio Obá se apropria de memórias afetivas e propõe uma reflexão íntima sobre seu próprio corpo ( miscigenado, negro, preto) em narrativas que contam outras histórias brasileiras – ainda marginalizadas. Para criar a cena de Requiem (à dir.) , o artista buscou inspiração numa imagem de um álbum de família: depois da novena, a avó costumava reuniar as crianças ao redor da mesa para cada um pegar o pão de Santo Antônio – um a oferenda após a cerimônia; um gesto de devoção; um sacrifício. O artista ficou abalado pela história da menina Ketellen, morta no Rio de Janeiro por uma bala perdida, e incluiu um retrato dela na obra. A ideia central, portanto, era “evocar um coral que, longe de ser apaziguador e sereno, grita em evidente revolta”, explica o artista. As crianças de Obá protestam dando voz a tantas outras sacrificadas numa oferenda diária a violência.
4. Evidências de uma farsa, de Carla Zaccagnini
A artista visual e curadora Carla Zaccagnini pesquisa, há algum tempo, repetições e padrões de objetos ou situações que parecem diferentes à primeira vista, mas, de uma maneira mais atenta, eles obedecem ao mesmo princípio. Nessa missão de encarnar uma espécie de detetive sócio-comportamental , Zaccagnini descobriu uma série de “coincidências visuais” entre uma imagem do Brasil que circulou nas décadas de 1950 e 1960, e outra produzida e divulgada nos últimos anos. Criou, então, um díptico ( à dir., no fundo) composto por duas capas de revistas internacionais: uma representa o “progresso” do país na era de Juscelino Kubitschek e outra retrata o momento favorável da economia brasileira em 2017. No cartaz (à esq.) que acompanha a obra, a artista coloca uma propaganda que circulou durante a ditadura de um lado e o plano de governo do Temer do outro lado.
5. Poder, de Carlos Vergara
Ativo e militante durante toda a ditadura militar brasileira, Carlos Vergara acompanhou e fotografou cenas do Cacique de Ramos, tradicional bloco de carnaval da Zona Norte do Rio de Janeiro, fundado em 1961, registrando momentos de resistência numa festa extremamente atrelada à cultura afro-brasileira. Neste projeto acabou registrando uma das imagens mais emblemáticas da história do empoderamento negro no Brasil: em Poder ele revela três homens seminus encarando e desafiando as lentes do fotógrafo com a palavra “poder” grafada em branco em seus peitorais negros, como um grafite político na própria pele.
6. America Amnesia, Runo Lagomarsino
Com o desejo de produzir obras e projetos que propõem a descolonização da América do Sul, Runo Lagomarsino cria instalações, esculturas, telas e filmes ressaltando o ambiente político e social dos territórios latino-americanos contemporâneos que se desenvolveram por meio de processos históricos questionáveis. A ideia não é propor novas narrativas ou verdades que foram omitidas da história oficial, mas mostrá-las sob nova perspectiva. Entre suas obras mais bem resolvidas está o carimbo com as palavras “America” e “Amnesia”, que suscitam uma reflexão sobre o apagamento no processo historiográfico das Américas e suas transformações culturais. Ao mesmo tempo, o artista questiona a leitura automática da América como sendo os Estados Unidos – uma prova de que o país que também é ex-colônia desenvolveu um processo de recolonização dos vizinhos.
7. Mask, de Daniel Steegmann Mangrané
Reconhecido por criar obras que permeiam os limites entre arte, ciência e natureza, Daniel Steegmann Mangrané pinta “mascaras” que referem-se às cosmologias indígenas ameríndias de duas maneiras. Por um lado, o artista investiga os padrões geométricos presentes na cultura dos povos nativos – motivos religiosos e rituais conectam sutilmente o sagrado e o cotidiano. Ao mesmo tempo, há uma referência às espécies mais relevantes para o cotidiano indígena: são usadas como alimento, medicina, elemento ritualístico ou instrumento de caça ( no caso das venenosas). Existem, ainda, as plantas que estão relacionadas às lendas ou histórias orais. Mangrané faz, assim, uma eficiente pesquisa sobre estética e signo nas culturas dos povos originários.
8. Camisas Blancas, de Doris Salcedo
Uma das mais relevantes artistas cubanas, Doris Salcedo cria a partir da memória da violência política. Dá forma à dor, ao trauma e à perda, criando um espaço para o luto individual e coletivo. As esculturas da série Camisas Blancas, composta por camisas brancas de algodão gesso e empaladas por vergalhões de aço, é uma resposta a dois massacres ocorridos em 1988 no norte da Colômbia, nas plantações de banana de La Negra e Honduras. Aludindo ao corpo humano ausente, as camisas fazem referência ao vestuário padrão dos trabalhadores nessas plantações, bem como ao vestuário funerário para os mortos. Empilhadas em diferentes quantidades, essas esculturas também parecem medir a perda de vidas humanas.
9. Não há silêncio, de Fernanda Andrade
Para a instalação Não Há silêncio, Fernanda Andrade coleta relatos sobre vivências ligadas ao racismo – seja na escola, no trabalho, na ciclo familiar ou nos relacionamentos – e os reproduz sobre pedras portuguesas, fazendo referência à colonização como origem do problema. A artista manipula as narrativas para formarem uma espécie de trama que mistura reflexos de um sentimento coletivo e impessoal abordando uma violência de Estado ( inclusive com estatísticas); histórias mais pessoais tomandoa a família e as religiões de matriz africana como estrutura base; e, passagens que ressaltam questões como autoestima, reconhecimento da racialização e empoderamento. É um trabalho sobre raiva, medo e tristeza.
10. Invisível, de Marilia Furman
Invisível (à esq.) é um díptico de chapas de aço carbono que contém, em cada uma delas, uma frase cortada a laser: “A máquina invisível ditava o ritmo do seu corpo”; “A mão invisível te mantém em movimento”. O díptico busca realizar um comentário sobre as transformações no mundo do trabalho, que determinam a dinâmica dos corpos de modo coercitivo, ainda que dotado de uma aparente leveza sugerida pelos termos “ritmo” e “movimento”, que normalmene estão relacionados a algo positivo. A palavra “invisibilidade” aponta para aquilo que é apagado no modo de produção capitalista, O trabalho, como categoria central deste modelo econômico e social, pode estar em constante transformação ( e em movimento), mas não mais ligado a seu modelo operário clássico de produção industrial e, portanto, se torne cada vez mais invisibilizado. “Não importa se há ou não máquinas impondo um ritmo ao corpo social, se o trabalho já em decomposição deixou como resquício somente a super (auto) exploração como herança. A mão invisível do mercado nos força a continuar”, explica a artista.
11. White Painting, Theaster Gates
Conhecido por trabalhos e projetos que dão luz, representação e representatividade às comunidades marginalizadas nos EUA, propondo discussões sobre urbanismo, espaços religiosos, música, arte e artesanato, Theaster Gates revitalizou um bairro inteiro em Chicago depois da crise de 2008 onde organiza práticas e eventos artísticos muito focados na memória afro-americana.
A obra presente na galeria é parte de uma instalação que originalmente incluía um conjunto de pias e o vídeo de um coral que performa hinos escritos por Gates com letras inspiradas em versos de Dave the Potter (1801-1870). Também conhecido como Dave the Slave, ele era um oleiro americano que morava em Edgefield, Carolina do Sul. Afro-americano escravizado, ele costumava assinar seus trabalhos “Dave” e é reconhecido como o primeiro oleiro escravizado a escrever em sua obra, durante um período em que a maioria dos escravos era anônima e proibida de alfabetizar. Dave inscreveu poesia em seu trabalho, geralmente usando dísticos de rima e incluindo sua assinatura.
Dos ralos saem as vozes desse coral que transformam as pias em auto falantes de cerâmica. Ele transforma a palavra nigger numa espécie de código de produto, por exemplo NGGRWR0019, nome da obra que está na exposição e gravado em outro do lado direito da pia. Há, aqui, uma clara referência ao minimalismo americano e ao urinol de Duchamp com uma importante crítica social, pois durante muito tempo os negros do sul do país eram proibidos de usar os mesmos banheiros ( e pias) que os brancos.
12. Musa Paradisíaca, de Rosana Paulino
Reconhecida por questionar o papel da mulher negra na sociedade brasileira, questionando os estereótipos de beleza e comportamento construídos historicamente com duvidoso embasamento científico, Rosana Paulino também aborda nossa história como consequência de outros problemas contemporâneos como violência dirigida à população negra. Em Musa Paradisíaca (à esq.) ela se apropria de uma fotografia científica antiga e do imaginário da construção racial brasileira para constituir um tecido social de remendos. Corpos escravizados, esqueletos e a figura da mucama são unidos pelo fio doméstico da costura, de maneira visível, com a imagem do azulejo português – representando o colonizador que escravisa estes corpos. A costura o que une, de maneira frágil, uma sociedade plural e dividida. Neste caso, qualquer fio solto pode ser facilmente puxado e tudo será desmanchado.
13. Rubem Valentim
Um dos maiores representantes da arte afro-brasileira, Rubem Valentim é reconhecido desenvolver ideias formais e construtivistas usando, em suas pinturas e esculturas, signos e emblemas universo do candomblé e, mais tarde, da umbanda. As formas são originalmente geométricas ( são compostas por linhas horizontais e verticais, triângulos, círculos e cubos) e sempre fazem referência às divindades das religiões de origem africana. Mas o estudo cromático entra como novo elemento construindo uma nova linguagem e signografia – o que permite uma revelação iconográfica de sua obra para aqueles que conhecem ou não as referências religiosas.
Em tempo: Valentim faz parte dos movimentos concreto e neoconcreto do país, mas sempre foi renegado pelo preconceito pela cor de sua pele ganhando reconhecimento apenas depois de sua morte. Desta forma, seus trabalhos fazem referência, de forma pungente, à ameaça sempre presente contra uma consciência progressista e humanista durante a ditadura no Brasil, que se reflete também no país em seus dias atuais.
14. Cadernos de África, de Paulo Nazareth
Paulo Nazareth tem um potente trabalho de performance – que resultam em instalações, fotografias e vídeos – explorando questões ligadas à raça ( o artista ressalta com frequência suas raízes africanas e indígenas), ideologia e distribuição desigual do desenvolvimento. Com uma prática ao mesmo tempo interdisciplinar e participativa, Nazareth busca personificar a ideia do artista como conector, decodificador e filósofo.
Na mostra ele apresenta parte de um trabalho em andamento (à esq.), Cadernos de África.Depois de uma caminhada de cinco anos que começou em 2013 em sua casa em uma favela perto de Belo Horizonte, cruzando todo Brasil, o artista começou um novo projeto-performance: percorrer por todo o continente africano a partir da Cidade do Cabo em direção ao norte. Sua caminhada-performance representa um questionamento lento e em tempo real de sua própria experiência e dos indivíduos que ele encontra em seu caminho, traçando uma sutil matriz de conexões que vincula não apenas pessoas, mas comunidades e histórias compartilhadas. Desta forma, as instalações consistem em arranjos de itens colecionados durante a jornada e trabalhos em vídeo que documentam no mesmo período.
15. Rota do Tabaco VI, de Dalton de Paula
Interessado em usar a arte como processo de cura simbólica, Dalton critica acontecimentos históricos ou cotidianos, pela impregnação de um aspecto religioso, místico, advindo doscultos afro-brasileiros. “O corpo silenciado está ligado ao medo e à insegurança. Portanto é um corpo enfermo, por isso eu busco possibilidades de cura desse corpo em plantas usadas por culturas afro-indígenas”, explica o artista.
Para a série Rota do Tabaco (no piso), o artista fez uma rota imaginária do tabaco (planta utilizada pelos indígenas do Brasil), que veio a se tornar um dos alicerces da economia no período colonial. Percorreu por Piracanjuba; pelo Recôncavo baiano; e, por Cuba, fazendo um recorte imagético desta rota direcionado pela perspectiva da política, economia, medicina e educação. Pintou as cenas construídas sobre cerâmicas produzidas por uma comunidade no interior da Bahia que econtrou em seu caminho. Vale lembrar: O barro é uma das matérias mais antigas usadas dar forma, portanto vem carregada de uma potente metáfora da nossa ancestralidade. A cor entra de forma importante no trabalho: o branco é uma referência à medicina e à cura, enquanto os detalhes metálicos trazem à tona os jogos de poderes econômicos que participam do processo de adoecimento desse corpo.