Desde 2021, Inhotim tem se dedicado a reparar as lacunas em sua história de dezoito anos, que grita a ausência do protagonismo negro em suas exposições e galerias permanentes. Convidar uma artista como Grada Kilomba para expôr em seu espaço é uma iniciativa de grande simbologia desse movimento.
Com ascendência são-tomense e angolana, Kilomba nasceu em plena ditadura salazarista na Lisboa de 1968. Em sua cidade natal, ela estuda psicologia – onde foi a única estudante negra do curso – e psicanálise. Em 2008, ela ganha uma bolsa para cursar seu doutorado em Filosofia, e muda-se para Berlim, onde reside até hoje. Após enfrentar inúmeros casos de racismo em uma sociedade que, segundo Kilomba, vive em “negação, ou até mesmo glorificação da história colonial”, deixar seu país de origem foi um “imenso alívio”.
Diante de sua biografia e formação acadêmica, é mais fácil de compreender porque sua produção em artes visuais é tão conceitual e dedicada a abordar memória, trauma e pós-colonialismo. Entre a teoria e as artes plásticas, ela borra os contornos que delimitam estas linguagens, propondo performances, instalações, vídeos e encenações, baseados sobretudo em conceitos oralizados.
A relação entre Kilomba e o nosso país já vem de longa data. Em 2016 ela integrou a 32ª edição da Bienal de São Paulo, que comissionou seu premiado trabalho “Illusions Vol. I, Narcissus and Echo”. Três anos depois, a Pinacoteca de São Paulo apresenta sua memorável individual “Desobediências Poéticas”, curada por Jochen Volz e Valéria Piccoli. No mesmo ano, seu livro “Memórias da Plantação: Episódios do racismo cotidiano”, lançado na ocasião pela Editora Cobogó, foi o mais vendido durante o festival literário Flip, em Paraty. Já ano passado, Kilomba retornou à Fundação Bienal, mas, desta vez, como curadora ao lado de Diane Lima, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel.
Na edição brasileira de sua obra literária, publicada simultâneamente em Portugal dez anos depois do primeiro lançamento, ela inclui uma pequena introdução onde diz que entende que o livro não poderia ter chegado antes nos dois países, “pois os comuns gloriosos e românticos discursos do passado colonial, com os seus fortes acentos patriarcais, não o permitiram”. Em entrevistas, Kilomba também já refletiu diversas vezes sobre como os brasileiros têm dificuldade de reconhecer e se responsabilizar pelas estruturas racistas que moldam nossa cultura contemporânea.
Para o contexto de Inhotim, Kilomba inaugurou “O Barco” no último sábado (13), uma instalação que abrange uma área de 220m², desenhando a silhueta do fundo de uma embarcação com 134 blocos de madeira queimada. A representação é uma analogia ao espaço onde milhões de pessoas africanas escravizadas foram transportadas durante as chamadas “Grandes Navegações” – evento colonial no qual Portugal se lançou pioneiramente e até hoje é anualmente homenageado pelos brasileiros no dia 22 de abril.
Um poema escrito pela artista e traduzido para iorubá, kimbundu, crioulo cabo-verdiano, português, inglês e árabe da Síria, foi pintado a mão sobre os blocos de madeira do centro da instalação, de forma que, para lê-los, precisamos nos curvar, trazendo a lembrança da mísera altura de 20 cm que estes porões possuíam. Entoando os versos do poema, a performance dirigida por Kilomba ativa a instalação em três atos ao longo do período expositivo. O primeiro conta com cantores de Gospel e Ópera, bailarinos clássicos e percussionistas, baseados em Lisboa, que inauguraram a exposição. Nos atos seguintes, a apresentação será reencenada por artistas locais de Brumadinho e região.
Como de costume da artista, a obra é baseada em uma estética minimalista, que dá protagonismo aos corpos que nela atuam. Em “O Barco”, Grada Kilomba faz o que sabe de melhor: cutucar feridas que partem de uma narrativa de violência, de modo que a barbaridade não seja explicitamente evidenciada na obra. Ao contrário, a performance é interpretada com grande elegância, servindo-se de beleza e emoção, sem recorrer a símbolos óbvios da expectativa colonial.