Quem olha as cartas de tarô produzidas pela artista Leonora Carrington em 1955, pode pensar que esse baralho era apenas mais uma de suas criações ligadas às questões surrealistas que permearam a sua trajetória. Mas as ilustrações dos 22 arquétipos maiores pintadas à mão pela artista tinha um significado maior em sua vida. O tarô foi resgatado nos últimos dez anos, tendo inclusive um livro inteiro dedicado a ele lançado em janeiro deste ano pela editora britânica Fulgur Press, que também desenvolveu uma edição especial do baralho.
Seu interesse por isso partiu de seu jeito de ver o mundo, de uma vontade de estimular o insconsciente com esse universo místico, incitar os sentidos, quase como uma fé. Isso porque a artista teve uma vida bastante agitada, especialmente por enxergar o mundo de uma forma muito pouco usual, fazendo com que fosse inclusive internada para tratamento psiquiátrico. Essa sua propensão, que tinha desde muito jovem, ficou estampada tanto em suas pinturas e esculturas quanto em seus escritos literários.
A artista nasceu em Lancashire, no ano de 1917, dentro de uma família um tanto aristocrática, de origem católica romana, em uma grande propriedade chamada Crookhey Hall. Como já pontuado, ela infringia regras sociais e desconsiderava as ordens e obrigações do mundo real desde muito jovem. E isso não só em uma forma que poderia ser considerada normal para uma adolescente rebelde, apesar de ter sido expulsa da escola do convento por duas vezes.
Mas, durante sua fase adolescente, quis experimentar coisas que faziam parte de um universo ilusório, como aprender a levitar e se interessou pelo folclore celta, assunto que estudou de forma bastante dedicada. Não foram apenas curiosidades de uma menina entusiasmada e perguntadora, mas assuntos que ela levava bastante a sério.
Não foi surpresa nenhuma quando o surrealismo se tornou sua grande paixão na escola de artes, seu imaginário já era atravessado pela estética e pelas figuras “do surreal” há bastante tempo. Depois foi apresentada a esse movimento pelo livro Surrealism, Sir Herbert Read, que ganhou de presente de Natal de sua mãe. Mas foi durante uma visita a uma exposição na galeria New Burlington, intitulada London International Surrealist Exhibition, que a chave virou completamente. Ali teve uma base bastante forte do movimento e entrou em contato com a obra de Max Ernst. Ela o conheceu alguns meses depois, em 1937, e se apaixonou por ele.
O relacionamento entre os dois levou ela a se mudar com ele para Paris, onde conheceu diversos expoentes do movimento surrealista. Durante os dois anos seguintes, eles moraram em uma casa de fazenda em Saint Martin d’Ardèche, que ficaram cheias com pinturas e esculturas de criaturas míticas realizadas por Carrington. Foi a partir dali que ela começou a se envolver com o tarô durante este período e que pintou a famosa tela na qual retrata o amado como um eremita.
A felicidade do casal foi interrompida quando Ernst foi levado para um campo de concentração francês por ser considerado um “estrangeiro indesejado” com as conturbações da II Guerra Mundial. Ele fugiu do local dois anos depois, quando Peggy Guggenheim o auxiliou a escapar para os Estados Unidos. Mas este evento deixou a jovem artista bastante angustiada e atormentada, ao passo de que foi considerada psiquicamente instável e internada em um hospital psiquiátrico na Espanha. A experiência foi relatada por ela no livro de memórias Down Below.
Quando foi liberada do tratamento, que contou com uma série de técnicas muito duvidosas e um tanto abusivas, Carrington se mudou para a Cidade do México em 1942, onde passou a pintar mundos luminosos dentro de outros universos. Ali a artista se casou, se tornou mãe e viveu até sua morte, em maio de 2011, aos 94. Foram mais de 60 anos vividos por ela na mesma casa, que em breve se tornará um museu dedicado à sua vida e à sua obra, com inauguração prevista para assim que a pandemia tiver um maior controle no país. A casa foi vendida à Universidade Autonoma do Metropolitana por Pablo Weisz Carrington, filho da pintora, sob a condição de que transformassem o local em um museu-santuário.
A artista será homenageada pela Bienal de Veneza em 2022, em uma edição que tem curadoria de Cecilia Alemani e que se terá a vida e obra de Carrington como base para trabalhar temas ligados à relação entre humanos, natureza, tecnologia e um mundo em mudança.