Golpes, facadas, mijo e fezes. No último domingo, dia 08 de janeiro, todos nós ficamos perplexos com a destruição que manifestantes vândalos realizaram ao invadir as edificações da praça dos Três Poderes – Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal -, em Brasília. E não tinha como deixar de perceber um especial ódio direcionado às obras de arte, como aconteceu no Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021. A perícia feita pela Câmara dos Deputados estima em ao menos R$ 3 milhões os prejuízos causados ao patrimônio público – o valor inclui mesas de vidro, cadeiras e mais de 400 computadores quebrados. O valor das obras de arte? Passam dos R$ 8 milhões! O diretor de curadoria dos Palácios Presidenciais, Rogério Carvalho, afirmou, em nota publicada pela Presidência da República, que será possível recuperar a maioria das obras vandalizadas durante os ataques, mas é importante entender o que algumas das principais peças significam para a história da nação, pois só assim poderemos encontrar futuros possíveis.
Bandeira do Brasil, 1995, Jorge Eduardo
A pintura que reproduz a bandeira nacional hasteada diante do Planalto, foi encontrada boiando na água que inundou o térreo do edifício após os hidrantes instalados ali serem abertos. Trata-se do maior símbolo do país.
Desenhada por Raimundo Teixeira Mendes, Miguel Lemos, Manuel Pereira Reis e Décio Vilares, a bandeira é, claro, cheia de simbolismos e é bastante revisitada por artistas de diferentes gerações. Não à toa, virou tema para um dos módulos da exposição coletiva Histórias Brasileiras, em 2022, no Masp. “A bandeira é um símbolo nacional, não é um símbolo de um grupo ou de outro grupo. A ideia não é rasurar a bandeira, mas fazer dela um símbolo maior. A democracia é sempre um regime incompleto e a nossa bandeira não representa a todas, a todos e a todes nós. Por isso, uma bandeira como a do Bruno Baptistelli é uma bandeira brasileira. Assim como a do Abdias Nascimento, que verticaliza a nossa bandeira. Eu gosto muito também da bandeira do Frederico Costa, que é uma da população LGBTQIA+, ou ainda a do Leandro Oliveira, que escreve ‘índios, negros e pobres’. Então, enfim, são muitas as bandeiras”, declarou a curadora Lilia Moritz Schwarcz em entrevista exclusiva para o ARTEQUEACONTECE.
A obra do artista carioca formado em arquitetura, entretanto, não apresenta desvios. É uma representação hiper-realista do símbolo oficial da nação estipulado pela própria legislação, em novembro de 1889, quando o nosso país deixou de ser uma monarquia e tornou-se uma república. Ela foi, entretanto, raptada por uma parcela da população e acabou sendo transformada, nos últimos anos, no ícone de um único partido político. Tornou-se protagonista de um mecanismo de distorção ética e estética.
É interessante notar que a obra foi feita durante o último ano do governo de Itamar Franco, num momento em que o país tentava recuperar seu orgulho, e suas cores, depois do impeachment de Fernando Collor.
Mulatas, 1962, Di Cavalcanti
Uma das obras mais importantes já produzidas pelo pintor carioca, a pintura de foi esfaqueada em sete lugares e vale, de acordo com o governo, cerca de R$ 8 milhões, embora seu valor de venda possa ser cinco vezes maior em leilões. É importante ressaltar que, apesar da tela estar sendo chamada na imprensa e nas redes sociais de As Mulatas, o título foi dado por colecionadores e agentes do mercado secundário, visto que o artista não costumava batizar suas obras.
Mas o apelido não foi adotado à toa. Di Cavalcanti é reconhecido no meio artístico como “pintor das mulatas” por conta da grande recorrência dessa temática em suas produções. Ele também foi um dos principais contribuintes na criação dos ditos símbolos da identidade nacional idealizados pelos modernistas brasileiros. Hoje, entretanto, ideias e conceitos desenvolvidos pelo grupo passam por uma revisão crítica e o próprio termo “mulata” é contestado devido à sua origem etimológica racista.
A obra e o movimento modernista falam sobre identidade e as origens da nação, assunto que tem ganhado reforço nos últimos anos – principalmente em 2022, quando comemoramos os 200 anos da independência e 100 anos da Semana de Arte Moderna. E deve crescer uma vez que há muitas exposições programadas para 2023.
Elizabeth Di Cavalcanti, filha do artista, contou ao jornal O Globo, que a tela em questão provavelmente foi feita por encomenda da companhia de navegação estatal Lloyd Brasileiro para decorar um dos seus navios turísticos. “Depois que a Lloyd acabou, essa obra foi parar na sede do governo brasileiro”, disse Elizabeth.
Galhos e Sombras, Frans Krajcberg
Frans Krajcberg foi um pintor, escultor, gravador, fotógrafo e artista visual polaco naturalizado brasileiro. Krajcberg desembarcou no Brasil em 1949 e logo se apaixonou pela flora brasileira. E não foi um amor de verão, o artista dedicou o resto da vida para defender nossas florestas. Aos poucos ele deixou de representar a natureza de forma figurativa e foi explorando a abstração até começar a usar resíduos de árvores do manguezal baiano e pigmentos naturais para compor suas telas e esculturas. Ao longo dos anos, acabou transformando sua obra em um grito de socorro que nos alerta sobre riquezas naturais devastadas pelas ações humanas.
É significativo ter, na cidade que abriga o Governo Federal, uma obra do artista-militante-ecólogo. Afinal, de acordo com o MapBiomas, iniciativa do Observatório do Clima realizada por uma rede de universidades, ONGs e empresas de tecnologia, a área desmatada nos últimos 3 anos alcançou 42 mil km², quase a área do Estado do Rio de Janeiro. A destruição cresce em todos os biomas (sendo 59% na Amazônia e 30% no Cerrado) e apenas 27% das áreas desmatadas são alvo de alguma fiscalização.
A negação da crise ambiental fica evidente nos ataques aos Três Poderes do Governo brasileiro: os galhos que compunham a obra de Krajcberg, avaliada em R$ 300 mil, segundo o Governo Federal, foram quebrados e atirados para longe.
Vênus Apocalíptica, de Marta Minujín
Com exposição agendada para o segundo semestre na Pinacoteca de São Paulo, Marta Minujín é uma das mais relevantes artistas da América Latina. Irreverente e irônica, ela é conhecida por criar instalações imersivas que articulam cor, som e movimento. Mas também tem a carreira marcada por obras políticas, caso de uma sequência de obras e instalações que desafiam o público com obras que buscam demolir “mitos universais”.
Na instalação The Parthenon of Books, por exemplo, apresentada em 1983, em Buenos Aires, a artista reproduziu a arquitetura do Partenon – edifício da Grécia Antiga que representa a origem da democracia. Mas a estrutura das colunas não foi preenchida por gesso, e sim por mais de 20.000 livros que haviam sido proibidos durante o regime militar argentino. O gesto foi repetido em 2017, durante a Documenta de Kassel, mas nessa versão ela reuniu publicações censuradas em diferentes governos radicais do mundo.
A obra escolhida para Brasília faz parte de uma série em que a artista fragmenta figuras da mitologia grega para sugerir que o planeta está dividido e prestes a desmembrar-se. O recado está dado.
A Justiça, 1961, Alfredo Ceschiatti
O artista mineiro foi um dos principais colaboradores do arquiteto Oscar Niemeyer e é o autor de várias obras presentes em prédios públicos de Brasília. Sua escultura em granito de mais de três metros de altura retrata uma Têmis, deusa grega da justiça, da lei e da ordem. Ela tem os olhos vendados sinalizando que a justiça não deve ser parcial e está sentada solenemente com a espada da lei sobre o colo.
Inaugurada há mais de 60 anos em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, a peça foi pichada com a frase “perdeu, mané”. As palavras foram ditas pelo ministro da Corte Luís Roberto Barroso, ao ser questionado por apoiadores de Bolsonaro sobre a credibilidade das urnas eletrônicas brasileiras, quando estava em uma viagem a Nova York, nos Estados Unidos, em novembro do ano passado.
Araguaia, 1977, Marianne Peretti
O vitral que homenageia o rio Araguaia, que banha os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará, foi criado especialmente para a decoração do Salão Verde da Câmara dos Deputados, dirigida por Oscar Niemeyer na década de 1970. A artista franco-brasileira, que foi a única mulher no time do arquiteto, fez a obra em vidro temperado e jatos de areia, fazendo referência ao movimento e curso do rio.
As águas, tando dos rios, quanto do mar, também abrigam memórias importantes para as tantas narrativas das Histórias do Brasil – pense nos que chegaram aqui escravizados cheios de memórias e costumes que construíram a identidade do país até nos rios que foram ˜violados” pelo concreto das grandes cidades e pela poluição. O descaso com a preservação de rios em diferentes partes do Brasil tem tido impacto direto na vida da população ribeirinha. O alto nível de mercúrio nas águas do Rio Tapajós, por exemplo, tem sido letal.
Peretti também criou os vitrais da Catedral de Brasília, com um estilo marcado pela estrutura orgânica de formas naturais, retalhos que lembram folhas, gotas d’água e raios solares. No Salão Nobre do Congresso, ela deixou ainda o vitral Phasifae, e o painel Alumbramento, no Salão Branco.
Bailarina, 1920, Victor Brecheret
A escultura de bronze, arrancada de sua base e encontrada horas depois no chão da Câmara dos Deputados, é avaliada atualmente em R$5 milhões, de acordo com governo federal, e chegou a ser classificada como uma das mais importantes da década de 1920, segundo Sandra Brecheret, filha do artista e responsável pela doação ao acervo.
Brecheret foi um italiano que morou boa parte de sua vida aqui no Brasil, onde mergulhou na arte folclórica e religiosa indígena e contribuiu com a introdução do modernismo na linguagem escultórica nacional. Em nota do acervo da Câmara dos Deputados, Sandra diz que a obra faz parte de uma tiragem de sete exemplares e reflete o período em que seu pai se debruçou sobre temáticas parisienses e explorou a delicadeza do universo feminino. A escultura “a bailarina” foi encontrada mas quebrada em seu pedestal, mas já foi restaurada.
O Flautista, de Bruno Giorgi
A escultura do italiano, avaliada em R$ 250 mil, ficava no 3º andar do Planalto, onde está localizado o gabinete presidencial e foi”completamente destruída”, informou o governo. Giorgi é o autor de outras obras muito conhecidas instaladas em palácios públicos em Brasília, como Meteoro, no Itamaraty, e Os Candangos, na Praça dos Três Poderes.
Filho de imigrantes italianos, Bruno Giorgi viu seu país ser tomado pelo fascismo italiano e acabou tornando-se membro da resistência. Participa na Guerra Civil Espanhola, mas depois muda-se para Paris, onde conviveu com a Henry Moore, Marino Marini e Charles Despiau. Em São Paulo, aproxima-se de Vitor Brecheret e Mário de Andrade, integrando-se ao movimento modernista. O que significa a destruição total da obra de um artista que lutou contra o fascismo?
Retrato de José Bonifácio, Oscar Pereira da Silva
Um das figuras mais notórias do processo de independencia do Brasil, de acorco com a história oficial, hoje questionada, foi José Bonifácio. Não foi à toa, portanto, que o pintor, decorador, desenhista tenha feito o seu retrato. A tela foi rasurada incluindo um bigode, semelhante ao do líder nazista Adolf Hitler, no rosto de Bonifácio.