O inferno na arte

Para onde vamos depois que morremos? Desde o começo da humanidade essa pergunta assombra os seres humanos. O inferno foi uma das concepções para explicar essa grande narrativa, e a arte teve papel essencial na didática do medo.

por Gabriel Caixeta
7 minuto(s)
Inferno,  pintura a óleo sobre madeira de carvalho, pintado por volta de 1510-1520 por pintor português de nome desconhecido.

Se existe uma certeza que todos temos, é a da morte. E é a partir daí que as religiões, há milênios, criaram a ideia do “mundo dos mortos”, que era, inicialmente, para onde todas as almas iriam no pós-vida. Na mitologia grega, uma das bases de todo o conhecimento ocidental contemporâneo, o mundo inferior e dos mortos era regido pelo deus Hades. Essa narrativa foi sendo desenvolvida por séculos até chegar ao que hoje chamamos de inferno. 

Chamada de arte sacra, as pinturas com temas religiosos eram, em grande parte, encomendadas para decorar e ilustrar passagens bíblicas nos forros e paredes das igrejas. Nesse sentido, falar de arte sacra, é falar de toda a história cristã, já que diversos artistas em épocas diferentes, usaram a bíblia para se inspirar e retratar acontecimentos importantes de sua narrativa.

Foi no ano de 311 d. C que o imperador Constantino reuniu em uma só força Estado e Igreja, e a partir de então, a relação entre arte e religião também se estreitou. Com a unificação, passou-se a pensar também em como decorar e onde seriam os lugares de culto. Mas seria correto colocar imagens e esculturas dentro dos templos já que profetas, na bíblia, julgavam incorreto adorar a imagens?

A adoração de imagens é um dos principais pontos de divergência entre a igreja católica e a evangélica, ambas cristãs e baseadas na bíblia. Os evangélicos não cultuam imagens, enquanto os católicos defendem que as imagens são, sobretudo, uma representação de um santo, mas não o santo em si, portanto, não seria ela um ídolo. Essa definição conceitual permitiu que a igreja começasse a decorar seus templos com pinturas e esculturas.

Já no final do século VI, o Papa Gregório Magno, passa a defender a arte como forma de ensinar os fiéis. Ele levava em conta que muitas pessoas não sabiam ler, nesse sentido, as imagens ajudariam a passar a mensagem. Nas suas palavras: “A pintura pode fazer pelos analfabetos o que a escrita faz pelos que sabem ler”. Foi a partir de então que as passagens relatadas na bíblia, começaram a ser apresentadas em pinturas.

A retórica cristã, pautada na dualidade entre bem e mal, céu e inferno, indica que os bons iriam se elevar ao paraíso, e os maus (aqueles que não seguissem à risca seus mandamentos), seriam punidos de forma impiedosa. É a chamada didática do medo, imposta pela igreja como forma de ensinar e controlar seus fiéis.

Sentado em um trono de fogo, Satanás devora uma alma danada, detalhe de mosaicos do século XIII que adornam o Batistério de Florença, Itália

Além das artes visuais, usada pelas religiões como forma de ensino e propagação da doutrina, outros métodos também foram muito utilizados, como a pregação e as artes cênicas. Era comum, por exemplo, durante o século XIV, o uso dos espetáculos teatrais para punição pública dos criminosos.

É importante aqui desmembrarmos o inferno em 2: o teológico e o popular. E o que isso quer dizer? O teológico é o que segue à risca os escritos e a bíblia, portanto, menos alegórico. Já o popular, é a criação da própria sociedade, na formação de folclores e crenças que passam de geração para geração através dos séculos.

Satã, Demônio, Diabo, Satanás e Anjo Caído são alguns dos nomes usados para identificar o responsável pelo inferno e pelas punições. Na história da igreja, o inferno é um local de sofrimento eterno para aqueles que cometeram em vida algum pecado mortal. Mas o momento anterior ao inferno, enriquece ainda mais o enredo, que é o dia do juízo final, na qual Deus, na posição de um juiz implacável, define quem vai para o céu ou para o inferno levando em consideração a forma como cada um agiu na terra.

É possível notar a importância desse momento em obras como “O Juízo Final” de Fra Angélico, no detalhe dos afrescos de Giotto di Bondone na Capela Scrovegni, ou “No Último Julgamento” de Michelangelo Buonarroti na Capela Sistina. Deus no centro do tribunal, os humanos na parte inferior esquerda, os santos na parte superior ao lado de Deus, e o inferno, no canto inferior direito. Nas três imagens, o julgamento já começou e os condenados estão a caminho do sofrimento eterno.

Juízo Final, 1431, de Fra Angélico

No início, as pinturas do inferno ficavam nas paredes das igrejas e capelas pela Europa, e mostravam o demônio em formas sempre macabras e em cenas de dor e sofrimento. Muitas delas, deliberadamente na parte inferior da parede, facilitavam a observação do público e funcionava como um lembrete de que o inferno estava próximo.

Curiosamente, pelo forte poder sugestivo sofrido por essas pessoas na idade média, muitas obras nas igrejas foram depredadas exatamente onde aparecia a imagem do demônio. Era uma forma da sociedade punir aquele que pune, em uma tentativa vã de acabar com todo o medo e o sofrimento.

A Queda dos Condenados, 1620, de Peter Paul Rubens

Com o avanço das ciências e do conhecimento, o medo passou a perder força entre a população, e com o surgimento do renascimento, as imagens do inferno deixam de ter um caráter mais grotesco e passam a representar os ideais de perfeição, harmonia, equilíbrio, graça e o cotidiano terreno. A exemplo, uma das mais conhecidas obras da história, “O Jardim das Delícias Terrenas” de Hieronymus Bosh. 

O Jardim das Delícias Terrenas, 1504, de Hieronymus Bosch.

Ainda que seja difícil definir um período, é possível verificar que o declínio da arte sacra se deu a partir do fim do século XVII e início do século XVIII, que pode ser explicado pela redefinição da sociedade européia, com as transformações econômicas, sociais e políticas. Entretanto, podemos destacar, já no século XIX,  em plena revolução industrial, novas formas de representar o inferno, porém, com dimensões mais misteriosas e complexas, como na obra do gravurista francês, Rodolphe Bresdin, com destaque para “A Comédia da Morte”, de 1854.

“A Comédia da Morte”, 1854 de Rodolphe Bresdin.

Por fim, é importante ressaltar que as imagens do inferno tradicional como visto desde a idade média, com objetivo de disciplinar e educar com base no medo, passaram a fazer parte de um passado anacrônico, se restringindo a um estilo. Os movimentos artísticos do século XX acabam por romper com a tradição da arte histórica e mudam a sua forma de fazer artístico.

A arte contemporânea também bebe desta fonte inesgotável de símbolos e significados tão ricos e importantes para a história da humanidade. Um exemplo disso, foi a exposição com o tema “A Divina Comédia – Céu, Inferno, Purgatório”, que aconteceu em 2014 no MMK Frankfurt, em que artistas de diversos países da África debateram, a partir de suas obras, a questão da vida após a morte.

O tema em questão é uma mão cheia para semioticistas, críticos e historiadores. Aqui fizemos uma breve passagem histórica, destacando alguns dos grandes nomes da arte sacra, bem como a importância da sociedade na criação de toda essa atmosfera, que dá ainda mais requinte à narrativa bíblica. Entretanto, uma coisa é possível concluir: a arte é, sem dúvida, indispensável para a vida na terra. Será também para além dela?

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