Nesta época de confinamento devido à necessidade de isolamento social para achatar a curva de transmissão do coronavírus, é impossível não relembrar artistas que produziram enquanto reclusos. Muitos artistas produziram dentro de seus refúgios em tempos de conflitos e epidemias, mas é importante lembrar daqueles que produziram dentro do confinamento psiquiátrico. Conversamos sobre o assunto com Raquel Fernandes e Ricardo Resende, respectivamente diretora e curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (mBrac); e Eurípedes Júnior, vice-presidente da Sociedade Amigos do Museu Imagens do Inconsciente (MII).
Localizado na Colônia Juliana Moreira, uma instituição psiquiátrica localizada no bairro carioca de Jacarepaguá, o Museu Bispo do Rosário leva esse nome em homenagem ao artista Arthur Bispo do Rosário (1909/11-1989). O artista desenvolveu toda a sua obra enquanto esteve ali internado, entre 1938 até o ano de sua morte. Desde 2018, sua história tem voltado a ter uma enorme visibilidade, pois foi anunciado que o pavilhão onde ficava a cela em que Arthur viveu está sendo restaurado para ser integrado ao museu. Era comum, antes da reforma psiquiátrica no Brasil e da evolução da luta antimanicomial, que pessoas diagnosticadas fossem tratadas em confinamento.
“Independente de quadro clínico, a arte é uma resposta. É sempre uma tentativa de resposta para aquilo que nos aflige. Um artista quando está criando está buscando respostas para diversas indagações que a realidade trás”, comenta a diretora do museu, Raquel Fernandes, que é também médica psiquiatra. Segundo ela, essa é uma forma de subverter a realidade, fazer um filtro para essa realidade: “O real, sem anteparos, é avassalador. Estamos vivendo um momento desse, no qual precisamos criar anteparos para essa situação, que é um vírus invisível que vem e nos invade”. A arte, para ela, é uma possibilidade de criar filtros, criando tentativas de respostas.
Vencer o medo seria a chave da questão, sendo ele algo que pode paralisar ou levar a uma ação. “Temos esse mecanismo fisiológico de fuga. Você sai correndo ou você vai para a luta”. Raquel acredita que neste momento possam ser produzidas respostas muito interessantes para lidar com a situação do isolamento, repensando a organização enquanto sociedade. Esse seria um momento de muita introspecção, reflexão: “É um momento de nos deparar com o real. E não só o real que o vírus nos coloca, mas o real do rompimento de vários filtros que não nos deixavam ver coisas porque estávamos muito presos no nosso cotidiano, como por exemplo o abismo social no qual estamos”.
O museu agora permanece fechado, seguindo as orientações dos órgãos responsáveis. Sendo um espaço cujo principal público são pacientes e ex-pacientes psiquiátricos que participam de atividades como oficinas e cursos oferecidos pela instituição, existe uma preocupação recorrente da equipe com essas pessoas. São pessoas que estiveram em um confinamento durante os tratamentos pelos quais passaram, então ter que voltar a um outro confinamento pode ser uma questão muito complicada. “Para nós é um paradoxo, porque o tempo todo trabalhamos com essa coisa de romper os muros do manicômio, de fazer com que as pessoas possam estar integradas à sociedade”, comenta Raquel.
A equipe tem procurado sempre estar junto dessas pessoas de forma virtual, buscando proporcionar outras formas de encontro, de atenção e de cuidado: “As redes sociais têm sido uma alternativa para diminuir as tensões causadas por esses momentos incertos”, diz a diretora. Nesse momento de pandemia, no qual alguns médicos tiveram que ser afastados por fazer parte de grupos de risco, Raquel tem atuado também como coordenadora médica do instituto e está atendendo no hospital psiquiátrico que fica dentro da antiga Colônia.
“É um contraste mesmo o que estamos vivendo. Essas pessoas passaram a vida confinadas e agora estamos pedindo para que elas voltem para o esse confinamento”, comenta Ricardo Resende, curador do mBrac, se referendo a esse público específico do museu, que participa do Ateliê Gaia e do Polo Experimental com atividades de ocupação. “A gente trabalha justamente a liberdade deles, né? O direito à vida, livre. O tempo todo falamos disso através da obra do Bispo do Rosário, da loucura de confinou o Bispo durante 30 anos da vida dele. A obra dele é quase uma libertação do ser, justamente uma janela para o mundo”.
Ricardo conta que a equipe tem recebido vídeos do público, sendo uma comunicação permanente. Ele comenta que receberam, por exemplo, um vídeo de Patrícia Ruth, uma artista que participa das atividades do Ateliê Gaia, no qual ela faz uma paródia de uma música e canta, falando sobre a vontade de sair do isolamento. São muitas as formas de se expressar artisticamente encontradas por eles.
Já Eurípedes Júnior, do Museu de Imagens do Inconsciente, fala sobre o contraste entre o confinamento que vivemos hoje, sob uma necessidade de saúde e preservação, e o confinamento vivido por artistas como Bispo, Fernando Diniz e Carlos Pertuis, que foram foram internados de forma compulsória para tratamento psiquiátrico, um tipo de ação que traz “consequências irreparáveis na vida de uma pessoa”. Ele acredita que as pessoas não estão preparadas para viver em um mundo interno, tendo em vista que a sociedade e o modo de vida são muito voltados para o mundo externo. “A quarentena mexe com isso, porque de repente damos uma freada brusca em relação a isso tudo”.
O Museu de Imagens do Inconsciente foi inaugurado em 1952, sob iniciativa da psiquiatra Nise da Silveira, visando buscar na arte uma forma de terapia por meio dos ateliês da Seção de Terapêutica Ocupacional para pacientes em tratamento. “A Nise descobre nessas pessoas esses conteúdos e vivências da humanidade, da espécie humana”, comenta Eurípedes. Para ele, o contato dessas pessoas com a arte fortalece a individualidade, abre espaço de liberdade onde o ser pode se colocar no mundo, como algo que vem de dentro para fora, não o contrário.
Eurípedes lembra que o artista Fernando Diniz passou a vida toda em um hospital psiquiátrico. Ele pintava interior das casas burguesas, cidades: “Ele pinta um mundo que ele não conheceu, que ele não viveu”. Ele cita que Carlos Pertuis também ficou internado durante um longo período e pintava cidades imaginárias, cidades fantásticas, mundos que têm vários sóis. “Ou seja, a loucura é uma espécie também de confinamento, um confinamento dentro do próprio ser. A pessoa fica aprisionada no inconsciente”.