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Nelson Leirner: a arte não tem prêmio de originalidade

por Julia Lima

por Julia

O Brasil perdeu ontem um de seus maiores criadores. Paulistano, Nelson Leirner vivia há mais de duas décadas no Rio de Janeiro, onde sofreu uma parada cardíaca na noite do dia 7/3, aos 88 anos. O ARTEQUEACONTECE preparou uma matéria especial sobre a vida e a obra desse artista único, que deixará muita saudade.

Nascido em 1932, seus pais já integravam o circuito artístico: sua mãe, Felícia Leirner, era escultora, e seu pai, o empresário Isaí Leirner, foi presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Apesar da convivência diária com a arte, ele começou a produzir apenas na década de 50 – apesar de ter estudado engenharia têxtil nos Estados Unidos, não chegou a terminar a faculdade, e começou a estudar pintura em 1956, utilizando-se de suportes mais tradicionais, como tela, tinta e objetos.

A partir da década de 60 começou a explorar meios pictóricos menos convencionais. Suas primeiras obras flertavam com o abstracionismo, mas agora o artista flertava com o dadaísmo, empregando matérias descartadas recolhidas pela rua, o que resultou na série intitulada Apropriações. Em 65, fundou o Grupo Rex, com outros grandes nomes da arte brasileira como Carlos Fajardo, José Resende e Wesley Duke Lee. E já em 1967, dois dos episódios mais marcantes de sua carreira se realizam: a “Exposição-Não-Exposição”, espécie de performance, e a submissão de uma obra que consistia em um porco empalhado ao 4o. Salão de Arte Moderna de Brasília. 

O primeiro, organizado para encerrar as atividades do Grupo Rex, foi um happening muito curioso: quase como uma feira livre de arte, Leirner estabeleceu que todas as suas obras poderiam ser levadas gratuitamente da exposição, o que deixou a galeria completamente vazia em oito minutos. Os trabalhos estavam bloqueados, amarrados, presos, acorrentados e travados, e as ferramentas para “libertá-los” estavam à disposição do público, que se debatia e acotovelava para tentar conseguir garantir o seu.

Já o segundo episódio foi tão notável quanto inesperado. Com a expectativa de ter sua obra rejeitada, Leirner submeteu ao júri do 4o. Salão de Arte Moderna de Brasília um porco empalhado dentro de um engradado de madeira. Para sua imensa surpresa, a obra foi admitida, o que o levou a questionar publicamente, em um artigo publicado no Jornal da Tarde, as razões pelas quais o júri havia incluído aquela peça no salão, pedindo esclarecimentos e justificativas concretas, assim como explicações sobre os critérios de admissão.

Este porco talvez seja peça mais essencial à compreensão do conjunto da obra de Nelson Leirner – é irônica e engraçada, ao mesmo tempo que revela com simplicidade as idiossincrasias do circuito artístico; é irreverente, mas leva a sério sua crítica aos mecanismos opacos seleção em eventos institucionais como os salões; e, por fim, colocou o artista como um personagem de bastante destaque na produção contemporânea, protagonizando polêmicas e abalando as bases do sistema.

Paramutt, 2005, coleção MAM São Paulo

A partir das controvérsias geradas por este “incidente” – que, invariavelmente, nos remete a Marcel Duchamp e sua “Fonte” (o artista francês apresentou um urinol deitado em uma mostra da Society of Independent Artists, em Nova York) –, Leirner ganhou cada vez mais notoriedade. As referências a Duchamp, inclusive, não se limitaram à sua trajetória como artista polêmico, mas também alcançam o tema, a forma e o conteúdo de suas obras. O próprio urinol é protagonista de diversas obras de Leirner, incluindo “Paramutt”, de 2005. De outro lado, as referências à história da arte já vinham pontuando trabalhos desde 1966, como as “Homenagens a Fontana”, que evocavam as fundamentais telas rasgadas do ítalo-argentino.

Aos poucos, os happenings foram dando lugar às instalações, aos múltiplos e até ao cinema. O uso de ready-mades era extenso, e a apropriação de obras de outros artistas como matéria dos trabalhos cresceu com a chegada dos anos 70. Em “O Grande Desfile” e “O Grande Combate” (de 84 e 85, respectivamente), o artista comprou e usou inúmeras esculturas de santos, deidades, animais, brinquedos, ícones do desenho animado e do cinema para criar massas heterogêneas, grupos totalmente dissonantes, mas ainda assim, organizados. A disposição solene desses ready-mades, como numa procissão, contrastava com a origem massificada e popular dos produtos. Ao incorporar elementos meio baratos, muitas vezes cafonas, o artista conseguia por em xeque não apenas o conceito do que é arte, mas também os espaços onde ela é exposta e consumida.

A partir desta estética dos objetos comuns industrializados e produzidos em massa, a fama – ou estigma – de contestador se consolidou de vez. Passou com mais frequência a empregar elementos muito coloridos e kitsch, capazes de provocar estranhamento e riso ao mesmo tempo. A ressignificação do banal, ordinário, ainda que não seja lá muito inédita, é especialmente singular na obra de Leirner, uma crítica ao consumo e ao próprio sistema de arte. Nesse ponto, poderíamos considerá-lo uma mistura de Duchamp com Andy Warhol, na medida em que lançava mão de recursos que trouxeram notoriedade aos dois ícones da arte contemporânea – Nelson mesmo dizia que toda obra tem parentescos…

Em anos mais recentes, Leirner vinha se posicionando sobre o mercado e os artistas, suas idiossincrasias, apontando para a crescente pasteurização da produção atual e afirmando a impossibilidade do florescimento da crítica dentro de um contexto extremo de consumo. Uma de suas últimas entrevistas está publicada no catálogo da mostra “AI-5: Ainda não terminou de acabar”, realizada no Instituto Tomie Ohtake, em 2018, na qual afirmou: “Estamos na grande época do consumo e das notícias pelo Instagram, Facebook… Hoje, a coisa real mesmo, colocada com inteligência, vai ser apenas vista por um grupo que já está a par”.

Neste momento de homenagem, não é tarefa fácil tentar abordar uma produção tão potente e que se expande por quase 60 anos. São muitas fases, diferentes conjuntos e materiais, poéticas e discursos, irreverências e referências, sempre marcadas por profundas contestações. Ao longo de sua vida, o artista impôs questões essenciais ao sistema da arte, ao comércio, à criação, à autoria, à originalidade, à apropriação, à circulação, à participação, à erudição e ao popular. Estes questionamentos não começaram e não terminam com Nelson Leirner – mas, certamente, tornaram-se muito mais interessante com suas contribuições.

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