Você tem um patrimônio estabelecido, dinheiro em caixa e agora quer investir em arte. Vai a exposições esporadicamente e não conhece bem o assunto, mas um amigo “entendido” oferece um negócio da China pra você. Cuidado, pode ser cilada!
Isso não quer dizer que seu amigo é desonesto – às vezes, é só mal informado. O marchand e galerista Max Perlingeiro, da Pinakotheke, que trabalha há mais de 50 anos com mercado secundário, contou ao AQA que a maioria dos pedidos que recebe para avaliar a autenticidade de uma obra “são de pessoas que querem começar uma coleção e têm um amigo ‘bem-intencionado’ que apresenta alguém que vende a obra, e só depois me procuram”. “E tenho que desfazer aquela ilusão.”
O mercado secundário é o que revende obras de segunda mão, não vindas do ateliê do artista, trabalhando com nomes consagrados já mortos e bastante valiosos – os blue chips, mais visados pelos falsários. Já as galerias do mercado primário representam os artistas vivos e algumas vezes os espólios de artistas mortos, comercializando na maioria das vezes obras em primeira mão.
No caminho das pedras do mercado de arte, onde as cifras são altas e a confirmação da autenticidade da obra é questão de conhecimento técnico especializado (e muitas vezes, da palavra de um contra o outro), vender gato por lebre é muito mais fácil do que parece ao incauto. Perlingeiro declarou que os números da falsificação no Brasil são exorbitantes. “Se a gente fosse falar em números verdadeiros, haveria um crash no mercado.”
É claro que a falsificação não é exclusividade do Brasil, nem do campo da arte. Já em 1903, Olavo Bilac dizia sobre a falsificação de obras do pintor ítalo-brasileiro Giovanni Castagneto: “Castagneto acaba de ter uma radiante consagração. Só se falsifica o que é bom e o que vale dinheiro.” Vinhos, uísques, perfumes, roupas e acessórios de marca são alguns dos itens mais visados pelo mercado do fake. Só que no Brasil a falsificação de arte tomou proporções difíceis até de mensurar.
“Falsificação não é privilégio do Brasil, só que aqui ficou um pouco mais descarado, é mais complicado. Além de já ter uma dificuldade natural mercadológica que é essa crise de desconfiança, a legislação brasileira não protege tanto. Por exemplo, se diante de um juiz você falar que uma obra é falsa, você pode ser processado, porque aí você tem que provar que a obra é falsa”, diz Perlingeiro.
“É muito difícil provar que uma obra é falsa, é preciso ressuscitar o artista. Já estive envolvido em vários casos e sempre saí perdendo”, contou ao AQA Jones Bergamin, o Peninha, leiloeiro de uma das casas mais conceituadas do Brasil, a carioca Bolsa de Arte, e com tanto tempo de estrada quanto Perlingeiro. Ele dá como exemplo o famoso caso de Giuseppe Irlandini, dono da carioca Galeria Irlandini, que em 1995 foi processada por venda de obras falsas – e ganhou a causa.
“Ele [Giuseppe Irlandini] conseguiu ganhar a causa no Rio, arrumou dois peritos do outro lado para confirmar [autenticidade] mesmo contra o Projeto Portinari, a Secretaria de Cultura do Rio, a Bolsa de Arte, a universidade, todos dizendo que as obras não eram autênticas. E os dois peritos viram o que todos os outros especialistas não conseguiram ver. Então, aqui, provar que uma obra de arte é falsa, só se pegar em flagrante o cara assinando o quadro”, contou Peninha.
COMO COMPRAR COM SEGURANÇA
Diante desse quadro apocalíptico, não desista da sua coleção. O mercado de arte no Brasil profissionalizou-se muito nos últimos 30 anos e está cheio de obras boas e bonitas que valem também como investimento. Só é preciso saber escolher, e para isso nós damos os três passos fundamentais para começar sua coleção sem cair em roubada. Eles são unanimidade entre os agentes de mercado e te guiam para uma compra segura e também rentável.
1. Em arte, caro é bom, bom é caro
Não adianta procurar aquela pechincha que ninguém mais viu. Se a obra está com um preço muito abaixo do mercado para aquele artista, fuja do negócio. “Não tem lanche grátis. Você não vai achar por R$ 500 um cara que tem 50 anos de trajetória, está nas principais instituições, isso não existe”, afirmou ao AQA Clara Gerchman, filha do artista Rubens Gerchman, diretora do Instituto que representa a obra de seu pai e também do Instituto Tunga.
Para Peninha, antes de ser uma vítima, quem compra obra falsa por querer economizar “é quase um cúmplice”. “Ele vai numa SP-Arte, vê um quadro do Volpi por R$ 1 milhão. Aí alguém oferece o quadro por R$ 250 mil, R$ 300 mil, ele faz uma contraproposta de R$ 200 mil e compra, ele está achando que se deu muito bem.” Só que nesse caso, o barato sai caro.
O valor de mercado de um artista é constituído por sua trajetória em obras, em exposições individuais e coletivas em galerias e instituições renomadas, nos prêmios ao longo da carreira e na inserção em grandes coleções públicas e privadas. O mercado trabalha com preços razoavelmente padronizados a partir dessa trajetória, que representam o valor de compra e venda de uma obra. Inclusive para ser um bom negócio na hora em que você quiser revender ou trocar sua peça para dar um upgrade em sua coleção.
“O colecionador é uma pessoa que tem que ser incentivada a fazer bons negócios, e você tem que estar disponível quando ele quiser mudar sua posição na mesa. Quer dizer, quando ele quiser vender, você também tem que dar liquidez para ele, porque senão fica uma via de uma única mão. Formando sua coleção, ele pode querer comprar uma obra de melhor qualidade. Então, se ele traz um desenho e sai com uma pintura, ele fica feliz e vê que o negócio é bom”, diz Perlingeiro.
Mas isso só acontece se você seguir a próxima dica.
2. Compre somente em lugares confiáveis
Seu amigo que indica o vendedor pode ser super bacana, mas a única forma de se garantir contra a compra de uma obra falsa é fechando negócio em empresas idôneas e com atuação reconhecida. O vendedor “independente” oferece um preço baixo, mas depois é mais difícil (senão impossível) encontrá-lo em caso de problema. “Ele [o comprador] nunca mais vai achar o cara, ou vão dizer que ele está mentindo, se for na Justiça ele não vai ganhar, porque é muito difícil conseguir provas de que uma obra é falsa, então é complicado”, afirma Peninha.
Quando a galeria ou escritório de arte é confiável, você encontra informações a respeito na internet e pode conhecer seu endereço físico, além de checar há quantos anos atua no mercado e qual o seu catálogo de artistas. Uma dica: fique de olho em nossas matérias e pautas e veja de quais galerias e escritórios de arte estamos falando. A gente não te põe em cilada!
Comprar em um lugar idôneo é importante porque a única forma de atuação prevista por lei num caso de compra de obra falsa é a anulação da venda. “No Brasil, quando uma obra de arte é falsa, é o que se chama direito de vício redibitório. A pessoa comprou determinado bem, entendendo ter determinadas características e esse bem não as tem de fato, o que frustra a vontade da pessoa de adquiri-lo”, explicou ao AQA o advogado Pedro Mastrobuono, atual presidente do Instituto Brasileiro de Museus – Ibram e colecionador de arte com vasta atuação em institutos de artistas e instituições de arte. Ele fundou, foi presidente e faz parte do conselho do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, além de ser diretor e conselheiro do Projeto Leonilson, para citar apenas dois exemplos.
“Nesse caso, o único mecanismo que existe na justiça brasileira é a revogação do ato jurídico (a compra). Ele é declarado nulo, o bem volta para quem vendeu e o dinheiro, para quem adquiriu, corrigido”, completou o jurista. Portanto, comprar de alguém duvidoso põe abaixo a única garantia que você tem contra uma obra falsa: ter seu dinheiro de volta.
A atenção tem de ser redobrada com o ciberespaço. O advento da tecnologia e da internet aumentou exponencialmente o espaço de escoamento de obras duvidosas ou de baixa qualidade pela venda virtual. “Quando eu comecei há 15 anos atrás, eu mapeei cerca de 30 casas de leilão online. Hoje, tem mais de 120”, diz Clara Gerchman.
No que Peninha concorda: “O problema do Brasil é a quantidade de obra falsa que está na internet. Tem obras de Lygia Clark, Volpi, Di Cavalcanti, Tarsila, que valem milhões, por R$ 1,5 mil, R$ 1 mil, o que é uma piada.” Mas para Max Perlingeiro, as compras online não escoam as falsificações mais valiosas. “Ninguém vai comprar de forma virtual uma obra cara, você compra coisas baratinhas.”
O leiloeiro tem que ter cuidado extra ao colocar suas obras abertas para lance. “A obra em leilão tem que ser autêntica, porque todo mundo vai ver, então o leiloeiro tem que fazer uma pesquisa muito mais minuciosa. Se eu vendo uma obra que vai ficar escondida numa casa de campo, ninguém vai ver, mas quando eu anuncio a obra num leilão, ela está lá, pública, para a consulta de todos”, explica Peninha.
Se o negociante é confiável, o mais provável é que você não precise nem entrar na Justiça para reaver seu dinheiro. “Se a galeria for séria e algum cliente questionar uma obra, você [o vendedor] primeiro devolve o dinheiro e pergunta depois”, afirma Perlingeiro.
3. Proveniência ou procedência da obra
As obras blue chip nunca surgem no mercado do nada, sem que sejam averiguadas suas trajetórias desde sua realização até o destino atual, seja ele uma coleção pública ou privada, uma casa de leilões ou uma galeria. É a chamada proveniência, ou como definiu Peninha, o “pedigree” da obra. São dois os caminhos de confirmação da proveniência da obra: os institutos que cuidam e catalogam a obra de um artista ou os catálogos raisonné, ou em português, racionais.
Dentre os institutos de artistas, dois dos mais famosos são o Projeto Portinari, impecavelmente dirigido pelo filho do artista, João Cândido Portinari, e o já citado Instituto Volpi. Como estes, quase sempre os institutos são os responsáveis pela realização dos catálogos racionais dos artistas sob seus cuidados e detêm o conhecimento necessário para afirmar a veracidade de uma obra, ainda que em termos jurídicos, isso não leve à destruição da falsificação. Na Europa, por exemplo, um instituto tem o poder de levar uma obra falsa a ser destruída com seu parecer de autenticidade.
Max Perlingeiro lembra-se de um caso envolvendo uma obra de Marc Chagall que um cliente trouxe para revenda e ele, antes de aceitar fazer a negociação, mandou para a avaliação pelo instituto do artista. “A obra foi para a França e era falsa, e quando você se submete a um parecer como esse, tem que concordar assinando uma declaração com que, caso a obra seja falsa, seja queimada diante de um juiz. Foi o que aconteceu. É a coisa mais correta, porque evita que a obra volte ao mercado. Se o negócio é só desfeito, seis meses depois a obra vai aparecer no Ceará ou no Paraná ou no interior de São Paulo.”
Corre no país, em segredo de justiça, um caso que, se vencido, pode se tornar jurisprudência e permitir que uma obra falsa seja destruída por quem a comprou. Em vez de ter o negócio desfeito e o dinheiro devolvido, o comprador fica com a obra, mas por sua frustração pela falsidade da autoria, é ressarcido com o valor da compra.
“Uma vez que o bem não é da autoria de quem pensei que fosse, ele não está protegido pela lei de direitos autorais. Os direitos autorais não incidem sobre ele. Se ele não tem autoria conhecida, se eu quiser destruir, eu posso, pois ele é meu”, explica Pedro Mastrobuono, autor dessa abordagem que pode se tornar um leader case (usado como exemplo em outros casos) se a causa for vitoriosa.
Catálogos racionais
Já os catálogos racionais são verdadeiros compêndios da vida e da obra de um artista. “O catálogo racional é fruto de uma pesquisa exaustiva, demora muitos anos, às vezes até décadas para ser confeccionado, em que tudo que se conhece a respeito daquele artista é levantado. Não só obras: cartas, documentos pessoais, catalografia, fortuna crítica, toda a correspondência trocada com outros artistas, etc. Tudo isso é sistematizado de uma forma racional, daí o nome. Essas informações são tratadas, compiladas e é feito um grande banco de dados. Cria-se uma linha do tempo, onde é possível entender tudo que o artista produziu desde seu primeiro trabalho até o último”, explica Mastrobuono.
Com a produção cada vez mais difundida desses catálogos, seja em volumes impressos ou em sites pela internet, é cada vez mais acessível ao comprador a pesquisa de uma obra a partir dessas informações. Ou seja, ao mesmo tempo que a tecnologia serve para a venda de obras falsas, é o canal para a pesquisa de autenticidade de uma obra, basta procurar.
Entre os artistas contemporâneos, a tecnologia tem a função também de permitir a catalogação das obras de forma mais rápida, antes mesmo de sair do estúdio para a galeria, o que era impensável durante, por exemplo, o modernismo, em que a fotografia ainda era cara e restrita a poucos.
“Os artistas vivos, como Adriana Varejão, Beatriz Milhazes, eles próprios já estão construindo seus catálogos. É uma outra época, existe a fotografia digital, faz-se a catalogação, o artista tem assistente. Antigamente o Di Cavalcanti, o Pancetti, o Guignard pintavam no ateliê, o quadro saía, ninguém fotografava, ninguém registrava, não tinha sistema, não tinha nada”, comentou Peninha.
Com a tecnologia, pesquisar a procedência de uma obra está cada vez mais fácil. “Hoje em dia, com a internet, se o cara vai comprar uma obra do Leonilson, em três cliques ele está no site do Projeto, onde todo o trabalho do artista está catalogado. Há um encurtamento: a ponta final, que é o comprador, está mais próxima do artista. Dá pra entrar em contato previamente, tirar dúvidas”, afirma Clara Gerchman.
Ela acredita que um comprador consciente, que pesquisa a obra e o artista antes de fechar negócio, não está só fazendo um favor para si mesmo, mas para o mercado como um todo. “As pessoas acreditam muito no glamour da obra de arte, mas é um produto; mais especial, mas ainda um produto, e o consumidor tem direito a pesquisar e se informar sobre ele. O mercado está mal acostumado com essa postura. Se o comprador de arte faz essa checagem, essa verificação, o mercado melhora”, acredita Gerchman.
Foi enganado? Não se envergonhe
Se você foi aconselhado por seu amigo e descobriu o logro antes de ler essa matéria, não se envergonhe. Há algumas razões possíveis para você querer fazer um negócio por outras vias que não as acima. Uma delas é que nem sempre as galerias são convidativas para quem ainda não é um colecionador conhecido. “Entrar na galeria é uma coisa inibidora, constrangedora, é um ambiente meio esnobe, então na internet a pessoa vê a obra, cabe na sala, combina com o sofá, e pronto”, diz Peninha.
Há também o fato de as falsificações mais valiosas serem de primeira qualidade, distribuídas por quadrilhas altamente profissionais. “Geralmente o falsário não assina ele mesmo a obra, porque se a obra foi apreendida em seu ateliê, ele pode dizer que está simplesmente fazendo exercícios de pintura, não é crime. Outra célula criminosa compra essa obra não assinada e paga o falsário.”
“Essa obra é assinada por um falsário especialista em assinatura, que nem conhece quem pintou o quadro e não sabe pra quem ele está assinando. Uma terceira célula criminosa é responsável por fazer o mise-en-scène e chegar com documentos de propriedade e toda a historinha de proveniência, ‘essa obra foi do meu avô, foi minha tia que comprou num sebo em Paris, etc’, tem sempre uma história maravilhosa por trás”, explica Pedro Mastrobuono. Quer dizer: no negócio ilícito de arte, não há espaço para amadores quando o assunto é muito dinheiro.
Às vezes até instituições de arte e colecionadores experimentados podem ser enganados, como no caso do documentário Fake Arte, sobre o qual falamos aqui. Mas se você conseguiu seu dinheiro de volta ou aguarda uma decisão da Justiça, não importa. Pagando o valor de mercado, comprando em lugares de confiança e pesquisando mais sobre a obra, você elimina o risco de compra errada em 100%. E ainda ajuda a tornar o mercado brasileiro de arte mais saudável.