Na Kogan Amaro, Carlos Mélo revela um Nordeste industrial e que foge dos estereótipos

Artista busca “ativar um novo campo simbolista” que afasta os conceitos e imagens que colocam o Nordeste sob uma perspectiva exótica e fetichizada, que não corresponde à realidade

por Jamyle Rkain
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Sapukaîa, 2021

No livro A invenção do Nordeste e outras artes, o historiador e professor universitário Durval Muniz de Albuquerque Jr. trabalha, dentre tantos pontos, como um imaginário sobre a região Nordeste do Brasil foi sendo estabelecido no decorrer dos anos, especialmente no que diz respeito aos produtos culturais da literatura, do cinema, das artes visuais e outros. Mitos e estereótipos foram sendo colocados inventados e tomados como realidade, criando uma ideia do que é o Nordeste. Em um trecho, ele faz considerações sobre a série de obras Os Retirantes, de Portinari: Estas imagens cristalizaram a visibilidade do Nordeste e do nordestino que serão agenciadas por outras produções imagéticas posteriores. O retirante esquelético e de olho vazado de Portinari, com seus bordões de madeira para se apoiar, com seus meninos barrigudos e tristes, com suas trouxas na cabeça, se tornará imagem difícil de ser esquecida e de se fugir quando se vai mostrar a “realidade” regional”.

A exposição Transes, rituais e substâncias, individual de Carlos Mélo na Galeria Kogan Amaro, busca fazer justamente uma crítica a esse nordeste de um imaginário estereotipado. A mostra acontece até o dia 18 de setembro na sede da galeria no bairro dos Jardins, em São Paulo. O que move a exposição, com curadoria de Marcos Amaro e texto de Márcio Harum, é o um pensamento que ativa uma espécie de “novo campo simbolista”, pensando um Nordeste tecnológico e industrial: “A minha ideia é colocar sempre em pauta essa questão dos estereótipos, das expectativas em relação ao Nordeste que foram construídas ao longo dos anos como aquele lugar exótico, fetichizado, que na verdade não corresponde à realidade”, ele conta. Em Transes, rituais e substâncias, o Nordeste de Carlos Mélo não é ficção, portanto, é realidade.

That is the question, 2021

Essa é a primeira mostra física que o artista tem na galeria desde que passou a ser representado por ela. Anteriormente, o artista realizou um projeto online aprovado pela Lei Aldir Blanc que comissionava exposições online. A galeria deu suporte tecnológico para que a exposição pudesse acontecer virtualmente, entrando como um evento em sua programação. O evento chamado Overlock partiu de algumas das obras de série homônima que está também em Transes, rituais e substâncias.

Nascido na cidade de Riacho das Almas, que fica no Agreste, área de transição entre a Zona da Mata e o Sertão, Mélo mora em Recife desde o início da adolescência. Quando começou a se dedicar ao projeto da Bienal do Barro, que já vai para a terceira edição em Caruaru, passou a revisitar essa região onde passou a infância. Ele recuperou, então, um sítio que foi de seus avós e transformou-o em um ateliê. Assim, passou a olhar mais para aquele como pesquisa para seus trabalhos.

“O meu trabalho como um todo é sempre deslocado”, Mélo comenta e pontua que um dos maiores elogios que já recebeu foi que seu trabalho é de difícil classificação, porque ele não utiliza um material específico ou se debruça sobre um tema específico. Na mostra de agora, como já dito anteriormente, ele apresenta obras desenvolvidas a partir de um pensamento que trata do advento industrial na região e seus impactos culturais, tratados por essas industriais, sobretudo a indústria têxtil. Dentre eles estão que traz desenho, pintura, escultura, instalação e fotografia. São trabalhos que foram produzidos nesses últimos dois anos, mas que já existem a mais tempo como ideia e pesquisa. “Eu sou um artista processual, considero que uma exposição é sempre um processo da vida toda”.

Além da indústria têxtil, tratada de forma evidente nas obras da série Overlock, há também uma abordagem que o artista faz da presença das granjas na região. Ele explica que, de certa forma, essa criação de galinhas foi uma das primeiras experiências industriais na década de 80 e início dos 90. O resultado da pesquisa em torno dessa questão é Sapukaîa, uma performance com uma série de três fotografias. “A galinha trazida da Europa pelos colonizadores, atemorizou grupos indígenas e ganhou seu nome tupi como sapukaîa (ave que grita, uma de suas versões). (…) Pela imagética do conceitualismo, a obra de Carlos Mélo reposiciona a noção de corpo sob condições de interatividade com o meio-ambiente agreste específico que o circunda”, escreve Harum no texto da mostra.

Êxodo, 2020-2



Produzida na Fundação Marcos Amaro (FAMA), em Itu, para facilitar o manuseio e a logística, a obra Cascos levou 20 dias para ficar pronta. Uma escultura de parede com 33 capacetes, ela parte de um questionamento de Mélo sobre como a moto substituiu os cavalos para tanger os bois. Em uma casa de agricultores no interior do Pernambuco, ele se deparou com uma espécie de varal de capacetes, que chamou a sua atenção também esteticamente. A obra foi produzida a partir de uma coleta de capacetes que ele realizou em Itu, em uma parceria com motoboys da cidade que cederam os capacetes que não usavam mais. Lá também foram produzidos os desenhos sem título que compõem a série Abismos. São três autorretratos em grafite sobre papel nos quais ele aparece como um tipo de divindade, com vários braços e uma cabeça de carranca ou como o esqueleto de um boi. “Eu sempre considerei o desenho como uma espécie de documento. É algo muito íntimo. É como uma inscrição poética”, ele comenta, acrescentando que esses desenhos partiram de uma provocação do curador que tem bastante curiosidade por suas obras em desenho.

Em uma instalação feita com neon, o artista experimenta um anagrama da palavra Tupi que se transforma em Pitú, uma marca da indústria de aguardente do Pernambuco. O artista, que gosta bastante de flexões semânticas, busca trabalhar esse anagrama para discutir questões sociais e de saúde como a presença do álcool nas comunidades indígenas, o problema do suicídio e o surgimento de doenças, como o alcoolismo. “Também é um trabalho de aponta para a Semana de Arte de 22”, ele destaca, por apontar para o famoso aforismo de Oswald de Andrade, “Tupi, or not tupi that is the question”, citado no Manifesto antropófago, publicado em maio de 1928.


Carlos Mélo: Transes, rituais e substâncias
Curadoria de Marcos Amaro
Data: até 18 de setembro
Local: Galeria Kogan Amaro São Paulo (Alameda Franca, 1054, Jardins)
Mais informações: https://galeriakoganamaro.com


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