Museu do Ipiranga reabre questionando a noção de História

Exibição de mais de 3100 itens do acervo em 49 salas e novo subsolo buscam tornar a instituição inclusiva, acessível e de “acolhimento das diferenças”

por Giovana Nacca
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fachada museu do ipiranga
Foto da fachada restaurada do Museu do Ipiranga (crédito Natalia Cesar – Conteúdo Comunicação)

Não é à toa: já na escada rolante de acesso ao público, é possível ver as pedras colossais que formam a fundação do Museu do Ipiranga. Também estão expostos um recorte da paliçada das folhas de palmeira juçara (a mesma que dá o palmito) em uma das paredes, e as vigas de madeira que sustentam o teto do último pavimento. Esse desnudamento da estrutura do edifício original dá a pista de sua nova vocação: mais do que ser um Monumento, como concebido inicialmente, o Museu do Ipiranga reabre como um espaço de questionamento de sua própria História e atividade. 

Com onze exposições de longa duração e um espaço para mostras temporárias com previsão de abertura em novembro, a instituição volta à ativa restaurada, ampliada e modernizada, expondo cerca de 3162 itens do acervo de mais de 450 mil peças, além de 562 itens de outras coleções e 76 reproduções e fac-símiles. As exibições mais longas se dividem nos eixos: “Para entender a sociedade” e “Para entender o museu”. 

“Como somos um museu universitário e temos um curso de pós-graduação em Museologia, é nosso papel falar um pouco sobre o que é um museu em geral e sobre a História do Museu do Ipiranga especificamente, que tem uma trajetória muito especial por estar instalado no Monumento à Independência. Então isso se tornou um eixo”, explica a docente da USP e curadora do museu Solange Ferraz de Lima.

Assim, muito além dos objetos que formam sua coleção, a própria configuração do hall de entrada e da escadaria são alvo da problematização de uma certa representação histórica racista e antiquada, em pleno curso quando o então principal Museu do Estado foi inaugurado em 1895.

Ali, várias estátuas de bronze homenageiam os bandeirantes, que no revisionismo atual são entendidos como exterminadores dos povos originários. Inclusive, ao lado da imensa estátua de D. Pedro I no meio da escadaria, um dos quadros que representam os ciclos econômicos e de ocupação do Brasil retrata a Caça ao Índio como atividade equivalente à extração da borracha ou à produção de açúcar. 

estátuas de bandeirantes e pinturas preconceituosas da escadaria
Estátuas de bandeirantes e pinturas preconceituosas ganham problematização em totens interativos, atualizando o museu (Foto: Heloisa Bortz – Conteúdo Comunicação)

Para problematizar e reverter essa imagem datada, o público deve acessar os totens interativos com 70 produções audiovisuais espalhados por todas as exposições. Um pelourinho de pedra, espécie de poste usado como local público de notificações, mas também de castigos físicos à população cativa, serve como a memória de um passado que não se quer mais a partir dos painéis que explicam seu papel perverso.

Independência ou Morte, de Pedro Américo

Um dos totens interativos é dedicado exclusivamente à tela Independência ou Morte, que em seus impressionantes 4 metros e 15 de altura e 7 metros e 60 de largura mostra uma versão bem romanceada do grito da Independência de D. Pedro I às margens do Ipiranga. O recurso audiovisual mostra como o trabalho foi influenciado por outros artistas famosos à época e os detalhes da composição que embelezam uma cena que nem se sabe com certeza se chegou a acontecer.

Por seu tamanho, a pintura feita pelo paraibano Pedro Américo em Florença entre 1886 e 1888, trazida de navio para cá, teve de ser restaurada no próprio Salão Nobre, enquanto a maior parte do acervo foi removida do museu. Outra obra que também não saiu do museu durante a recuperação foi a enorme maquete da cidade de São Paulo em 1841, projetada e confeccionada pelo holandês Henrique Bakkenist entre 1920 e 1922. 

A retirada das peças e a análise técnica para restauro seriam as responsáveis pela distância entre o fechamento do Monumento em 2013 e o início das obras, em 2019. A captação de recursos entre iniciativa privada (incentivados ou não) e órgãos públicos também fez parte desse processo e atingiu os R$ 235 milhões.

Espaço expositivo e mostras

Todo esse dinheiro ajudou não só na recuperação de obras e do edifício e do Jardim Francês como também na criação de novos espaços e na abertura de salas antes inacessíveis ao público, antes reserva técnica e administração. O espaço expositivo passou de 12 para 49 salas.

Inteiramente construído durante as obras, o subsolo do prédio original teve 35 mil m³ de terra escavada para construir os 7 mil m² que abrigam a recepção para o público, o espaço expositivo de mostras temporárias (ainda a ser inaugurado), salas de aula, auditório e área para implementação de um café, ainda em busca de parceiro. 

Tudo para acolher os espectadores e gerar visitação recorrente. “Queremos evitar aquela coisa tradicional das pessoas que conhecem o museu porque vieram uma vez com a família e uma vez com a escola, queremos mudar essa concepção. O museu é para ser vivido, frequentado”, declara a coordenadora geral das exposições, Vania Machado. 

Isso é perceptível na expografia e na curadoria. Por exemplo, na mostra “Comunicar: louças”, que integra o núcleo “Para entender o museu”, o público vai encontrar desde faianças completas usadas pela família real, estampadas com seu brasão, até uma louça japonesa, homenagem a uma das maiores comunidades de imigrantes do país, terminando no famoso jogo Duralex que muitos dos espectadores já usaram pelo menos uma vez. É uma maneira de mostrar que a conservação da memória de um povo passa tanto pelo oficial quanto pelo cotidiano, abrangendo as diferenças.

“Nós combatemos a legitimação da instituição. As pessoas entram e vêem esses objetos quase como sagrados, um grande fetiche. A instituição tem um peso de legitimação muito grande. Nós queremos mostrar que somos seres sociais, curadores construindo conhecimento numa certa perspectiva e que outras são possíveis”, diz Vania. “Por isso, vamos lançar um edital para que as mostras sejam constantemente tensionadas por obras que interfiram nelas, sejam leituras, performances, qualquer tipo de teatralização, outros audiovisuais (os contrapontos), objetos etc., para tensionar esse discurso institucional.”

Até várias das 122 pinturas exibidas no museu vão além da visão histórica oficial e permitem conhecer mais de usos e costumes do passado. Telas como Pouso de Tropeiros em Cubatão, pintada por Franta Richter em 1922 com base em desenhos de Hercule Florence, fazem ver em que circunstâncias eram usados muitos dos objetos expostos em “Mundos do Trabalho”, integrante do eixo “Para conhecer a sociedade”. Os recursos acessíveis, presentes em 379 objetos táteis e até olfativos, garantem a apreciação para todos os públicos.

“Tivemos agora em agosto o conselho internacional do ICOM, que instituiu uma nova definição de museu que é exatamente o que estamos fazendo aqui: é a preocupação em preservar, divulgar, ser inclusivo e acessível. O museu tem que ser um lugar onde os dissensos sejam tratados. Não estamos aqui para tomar partido, mas para trabalhar a reflexão histórica sobre nosso momento e nossa trajetória. O museu tem que ser um espaço de acolhimento desses dissensos, dessas diferenças. As pessoas precisam se sentir representadas, incluídas. Essa é a única razão de ser de um museu de História”, afirma Solange Ferraz de Lima.

As exposições de longa duração têm prazo para acabar: 5 anos, em vez dos 3 idealmente desejados pela coordenação das mostras, com modificações pontuais para evitar o desgaste excessivo dos objetos. Por isso – e pelo ingresso grátis até 6 de novembro -, vale conferir a reabertura do Museu do Ipiranga a partir do dia 8 de setembro para o público. Mas tenha paciência na hora de agendar sua visita pelo site: os ingressos para a primeira semana (8 a 11 de setembro) se esgotaram em poucos minutos.

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