A 33a Bienal de São Paulo, intitulada “Afinidades Afetivas”, foi organizada a partir de um modelo inusual de curadoria: sete artistas foram convidados a atuar como co-curadores da mostra, cada qual montando uma exposição separada dentro do pavilhão Ciccillo Matarazzo. A expografia definiu essas mostras como ilhas de um arquipélago, navegamos entre uma e outra. Além disso, o curador geral Gabriel Pérez-Barreiro selecionou 12 projetos individuais para compor a Bienal, incluindo monografias sobre três importantes artistas latino-americanos preteridos pela história da arte hegemônica oficial.
Dentre esses artistas está o primeiro grande destaque da bienal, apresentado entre grandes vazios do segundo andar: o trabalho de Lucia Nogueira. A artista goiana radicada em Londres não teve muito espaço em terras brasileiras, com poucas mostras dedicadas à sua produção. Em Afinidades Afetivas, uma série de obras da década de 1990, principalmente esculturas e instalações, ocupa uma pequena área cinza dividida em nichos e saletas. As articulações inusitadas de objetos do cotidiano e as simples operações que os subvertem criam potentes mas silenciosas peças que transitam entre o humor sarcástico, o flerte com a violência e a crítica social. Os títulos empregados por Nogueira muitas vezes fazem o papel da “sacada”, ou da dedução dos sentidos estranhos empregados pela artista.
Em frente a este conjunto, do outro lado do pavilhão, encontra-se a coletiva “Sempre/Nunca”, de Wura Ogunji. A artista-curadora nigeriana selecionou seis artistas de diferentes lugares – África do Sul, França, Líbano, Nigéria, Estados Unidos – para criar trabalhos inéditos, pensados para o contexto da Bienal. Quando perguntada sobre sua escolha de trazer apenas artistas mulheres durante a coletiva de imprensa, Ogunji disse que essa é uma pergunta importante, mas que se recusa a responder por que. Em entrevista ao ARTEQUEACONTECE, a artista contou que aprendeu a responder perguntas fechadas com respostas abertas. Para ela, nos casos de sexismo e racismo, não enfrentamos apenas o problema da existência dos preconceitos, mas que nos prendemos e nos limitamos a essas discussões, e deixamos de falar sobre o que importa. “Próxima pergunta”, em geral, é o que Ogunji devolve a quem se arvora a interrogá-la sobre a presença feminina em sua mostra.
Sobre a experiência de curar uma exposição, a artista que coordena e conduz um espaço em Lagos, na Nigéria, contou que selecionou nomes que responderiam de maneira bonita e íntegra ao convite e ao contexto. São artistas que já tinham algo em comum em diálogos estabelecidos, com obras que também se preocupam com o público, tanto quanto com o tema estabelecido por ela. Lhola Amira, por exemplo, realiza aparições no pavilhão, convidando pessoas negras a sentar-se em uma cadeira alta para que ela possa lavar seus pés com água e sal. A ação é um convite à cura de traumas e dores passadas causadas pelo genocídio escravocrata praticado nas Américas por séculos. A meta de Lhola é atender 1876 pessoas, e este número não é aleatório – marca o ano da lei do ventre livre, quando filhos de escravos passaram a ser livres no Brasil.
Outra forte presença feminina na mostra é a artista-curadora Claudia Fontes, com uma abordagem bem diferente de Ogunji. Também localizada no segundo andar, Fontes escolheu uma imagem poética como fio condutor de sua curadoria. “O Pássaro Lento” é o mote escolhido por ela, assim como o nome do conto que ela comissionou ao escritor argentino Pablo Martín Ruiz. É também o título de sua obra “Nota al pie”, que traz 5500 peças de cerâmica quebradas ligadas às 5500 palavras que formam o conto de Ruiz. Toda a exposição parece um exercício literário, uma criação narrativa estranha que brinca com a ideia de tradução, tema do conto e motivo pelo qual o coletivo Outranspo foi convidado a transcriar cada trabalho da exposição em pequenos poemas impressos nas legendas das obras.
Um momento curioso na exposição é o projeto de Luiza Crosman. A jovem artista instalou um painel solar no teto do prédio da Bienal para alimentar as baterias que mantêm um computador ligado, minerando criptomoedas como Etherium e Bitcoin. Ainda um mistério para a população em geral, essa nova economia virtual é alvo de especulações do mercado e motivo de altos ganhos de empreendedores da tecnologia. Crosman decidiu usar o valor minerado ao final do período expositivo para realizar algum outro projeto artístico seu que será definido no futuro, e ainda aconselha a administração da Bienal a manter os painéis solares para pagar a conta de luz da Fundação. Utilizar-se do sistema da arte para produzir riqueza não é uma grande inovação, mas é um recurso interessante empregado por uma jovem artista.
Em 2017, durante a documenta 14, em Kassel, na Alemanha, a artista Danai Anesiadou decidiu que seu trabalho para a mega-exposição seria expor 1 kilo de ouro refinado em uma estrutura selada a vácuo (obra que depois passaria a ser de sua propriedade). Junto do objeto, pendurado a uma altura inacessível ao público, Anesiadou publicou uma carta na qual dizia que esperava que o ouro pudesse ser uma reserva financeira, um elemento de real valor que ela poderia trocar de volta por dinheiro para financiar uma obra ou exposição futura, em seus próprios termos, e não submetida às regras da instituição. Na mesma medida, a ação de Crosman também faz uso de uma grande mostra, que traz reconhecimento e expectativas, para gerar renda para futuros projetos realizados de forma independente, sem as amarras da Bienal.