Como forma de participar deste momento de reabertura dos espaços culturais no Brasil, a Fundação Bienal de São Paulo organizou uma mostra coletiva, inaugurada em novembro, intitulada Vento. A exposição reúne obras de 21 artistas que também estarão na mostra principal da 34ª Bienal de São Paulo, que foi adiada para setembro de 2021 devido à pandemia. A mostra atual fica em cartaz no Pavilhão da Bienal de São Paulo até o dia 13 de dezembro de 2020. Confira no site da instituição as opções de agendamento da visita e as recomendações de segurança.
A distância, o vazio, o espaço e o invisível são algumas dessas questões. Desta forma, conta o curador Paulo Miyada, a mostra foi conduzida sem lutar contra o enorme espaço do Pavilhão, ou seja, sem construir paredes ou divisórias, dando muito espaço para cada obra, tornando tangível a distância entre uma e outra. Outro ponto importante de Vento é o interesse em demonstrar como o sentido de uma obra de transforma quando é vista em contextos diferentes, sejam espaciais ou institucionais. Podemos sempre descobrir outras coisas sobre uma obra.
Adentrando a exposição, se vê, ou melhor, se ouve, uma obra sonora da artista belga Jacqueline Nova. Ela radicou-se na Colômbia e foi uma grande compositora de música experimental da América Latina no século XX, que trabalhou com a cosmogonia ameríndia em diálogo com seu repertório musical.
Próxima a ela está o trabalho da artista portuguesa Luisa Cunha, 1.680 metros, concebido especialmente para o espaço e comissionada pela Fundação Bienal. Também uma obra sonora, ela narra a experiência de seu corpo naquele espaço especificamente… Assim, ela coloca a atenção sobre seu próprio corpo, seu próprio tamanho e o espaço que ela tem diante dela. Pensando em quanto tempo levaria para percorrê-lo todo.
Seguem-se dois trabalhos em vídeo do artista japonês Koki Tanaka. Ambos foram apresentados na Bienal de Veneza. São vídeos que falam sobre solidariedade, sobre o “fazer junto”. Os dois trabalhos fazem parte de uma série na qual o artista testou formas de colaboração entre pessoas para se fazer algo, investigando os conflitos e as negociações em torno disso.
O brasileiro Paulo Nazareth apresenta [A] LA FLEUR DE LA PEAU [[A] A FLOR DA PELE], inédita no Brasil. Esta performance foi transmitida exclusivamente pelo Instagram na véspera da abertura da exposição ao público. O registro da live pode ser visto no IGTV da Bienal e do ARTEQUEACONTECE.
Trabalho que dá nome à exposição, Wind, de Joan Jonas, é um filme que registra uma performance. A artista quis fazer um experimento no espaço aberto de uma obra que havia pensado para um ambiente interno… E acabou experimentando uma força da natureza: a do vento. Os artistas que participam da performance tentam manter-se em pé e fazer coreografias enquanto seus corpos são atingidos pela força da ventania. “Virou uma luta, uma dança, com essa força invisível e imprevisível”, diz Miyada. Feita em 1968, a obra traz uma reflexão sobre os “ventos” de mudança e transformações políticas e sociais ocorridas naquele ano, especialmente pelo movimento que aconteceu na França em maio daquele ano.
Em Experimentando o vermelho em dilúvio, Musa Michelle Mattiuzzi apresenta uma performance na qual faz uma caminhada pelo Rio de Janeiro até chegar ao monumento de Zumbi dos Palmares. Neste trabalho, ela denuncia a violência sofrida pela população negra no Brasil desde o período colonial, explicitando a agonia e a dor.
A artista colombiana Gala Porras-Kim traz mais um trabalho sonoro para a exposição, ecoando um som que é quase um assobio, que resgatando uma linguagem dos zapotecas, povo nativo do sul do México. “Eles tinham uma linguagem tonal. O significado não era pela articulação, mas pela entonação. Então eles conseguiam assobiando ou mesmo cantando transmitir mensagens que os colonizadores não entendiam”, comenta o curador Jacopo Crivelli Visconti.
Segundo ele, essa obra funciona como uma trilha sonora para o vídeo de Joan Jonas e também se conecta com as pinturas de Jaider Esbell. O artista apresenta obras de uma nova série, intitulada A guerra dos Kanaimés, na qual trabalha entidades macuxis, etnia indígena a qual ele pertence. Ao longo de toda a exposição, a curadoria procura manter obras que referenciam culturas ancestrais relacionando-se com outros trabalhos, sem limitá-las a um rótulo.
A Maze in Grace, performance de Neo Muyanga feita na inauguração da Bienal de São Paulo, em fevereiro, está registrada em vídeo exibido em Vento. O vídeo comissionado para a mostra tem ainda mais elementos que ajudam a compreender a obra, como documentos históricos e desenhos de Muyanga. Essa exibição da obra vai de encontro à ideia da exposição de fazer com que obras sejam vistas em momentos e contextos diferentes, com o público podendo ressingnificá-la.
A artista japonesa Yuko Mohri apresenta I CAN’T HEAR YOU, feita especialmente para o pavilhão e também comissionada pela Fundação. Ela é uma segunda edição de uma obra que ela fez em 2017, trabalhando agora com as características do prédio de Niemeyer. A obra traz três sons diferentes emitidos por duas caixas colocadas a certa distância uma da outra. Para compreendê-los, o público precisa caminhar entre elas, atividade que envolve também a relação de seus corpos com o espaço.
O som do único sino tocado quando Tiradentes foi executado em 1792 é trazido para a exposição como um enunciado que apresenta um núcleo específico de obras. “Por ser inimigo da coroa portuguesa, nenhum sino poderia tocar naquele momento. Porém, reza a lenda, que esse sino, de uma igreja em Ouro Preto, em Minas Gerais, tocou”, conta Jacopo.
Este núcleo é iniciado por obras de Regina Silveira do conjunto Dilatáveis, trazendo imagens de personagens marcantes da história brasileira, como políticos, jogadores de futebol e militares, com sombras ampliadas e distorcidas. Em seguida, é apresentada uma videoinstalação realizada a partir do registro da performance Palavras Ajenas, de Léon Ferrari. A performance, concebida pelo artista como crítica à Guerra do Vietnã, seria apresentada como composição de uma das exposições que teriam aberto no Pavilhão este ano, mas foi cancelada em razão da pandemia.
Bastante impactante, a obra da sérvia Ana Adamović, que nasceu sob o governo de Tito, resgata uma imagem de crianças surdas que vocalizam canções patrióticas que elas mesmas não podem ouvir. No vídeo Dois Coros, Adamović reúne crianças surdas para interpretar uma canção patriótica em linguagem de sinais, como forma de se apropriarem de seus destinos.
Ao final desse núcleo, são trazidos trabalhos de Antonio Dias, como uma antecipação de um conjunto maior que deve ocupar a Bienal no próximo ano, mas também como forma de dialogar com a individual do artista que ocorre ali do lado neste momento, no MAM!
Chegando ao terceiro andar da exposição, Clara Ianni demonstra de forma bastante enfática a relação que a exposição pretende estabelecer com a arquitetura do prédio. As formas projetadas na parede viram objetos bidimensionais, causando um jogo de percepção para o público e se fundindo à paleta de cores do prédio.
Deana Lawson, que teria uma das individuais que foram suspensas este ano, aparece na exposição com uma obra em vídeo que reflete sobre a diáspora africana, o qual se conecta com seus trabalhos que estarão na mostra principal em 2021 e com vários trabalhos em Vento.
É um vídeo que reflete sobre a diáspora africana, algo que está bastante presente na mostra em seu todo. Nele, a artista compila imagens de encontros entre grupos formados por pessoas negras, basicamente em países da África e nos EUA, como concertos e cerimônias religiosas. Duas obras de Paulo Nazareth voltam a aparecer no terceiro andar: uma escultura em homenagem ao atleta Tommie Smith, que fez um gesto em referência aos Panteras Negras ao ganhar as Olimpíadas em 68, e uma instalação de uma capa impermeável, usada nas Cataratas de Vitória, na Zâmbia, que remonta a ancestralidade e a resistência.
A exposição traz também uma parede com obras de Eleonore (Lore) Koch, falecida em 2018, considerada uma das pintoras mais importantes do Brasil. Seus quadros trazem uma aura metafísica, que é algo muito simbólico em Vento.
Daqui, obra da espanhola Edurne Rubio comissionada pela 34ª Bienal, mostra uma série de entrevistas que a artista fez como forma de reconstruir a história do MAC-USP quando ficava ali no prédio, resgatando toda uma história da instituição especialmente durante sua atuação como resistência na Ditadura Militar.
O segundo enunciado da exposição, que aponta para um último núcleo de obras, é constituído por um canto Tikmú’ún, originário dos Maxakali, conhecidos como o “povo do canto”. Uma das funções desses cantos é a preservação da memória de coisas que não existem mais, como espécies de plantas e animais
Nesse núcleo que se inicia, a questão da memória é muito importante, já anunciada pela obra de Edurne anteriormente. Seguem pinturas a guache de Alice Shintani, que dão forma a elementos da flora e da fauna da Amazônia, muitos em perigo de extinção. A ideia de ver a mesma obra em contextos diferentes aparece novamente, agora com Insurgências Botânicas, de Ximena Garrido-Lecca, que estreou a programação desta Bienal em fevereiro. Agora, ela aparece em outro local e outra montagem, trazendo sua transformação desde a primeira apresentação.
A obra No Show, do holandês Melvin Moti, encerra a exposição. No vídeo, o artista faz uma reconstrução imaginária de uma visita guiada ao Hermitage, na Rússia, para um grupo de soldados durante a II Guerra Mundial, em que o guia apresenta as obras que não estão em exibição, para sua proteção no caso de algum ataque..
Moti faz uma reconstrução imaginária onde o guia conta sobre as obras que ali estavam em exibição, mas que foram retiradas para proteção caso houvesse algum ataque. Tendo uma ligação com a memória de uma instituição, mas também com os cantos Maxakali, de contar uma história sobre o que não está mais em um lugar.
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Os curadores contam que todos os artistas – e provavelmente todas as obras – estarão também na exposição principal da Bienal de São Paulo, que foi adiada para o período entre 4 de setembro e 5 de dezembro de 2021. Jacopo acrescenta que a ideia de ver trabalhos em momentos e espaços diferentes, trazendo novos significados às obras, ficou tão forte que mesmo trabalhos que não seriam mostrados em 2021 estão sendo repensados para integrar a exposição.