Recentemente inaugurada pelo Instituto Tomie Ohtake, a exposição “Calder+Miró” apresenta mais de 150 obras – entre pinturas, desenhos, gravuras, esculturas, móbiles, stabiles, maquetes, edições, fotografias e joias – provenientes de coleções institucionais e privadas brasileiras. Ocupando quase todos os espaços expositivos do Instituto, a mostra celebra dois ícones da abstração na arte moderna: o escultor norte-americano Alexander Calder (1898-1976) e o pintor catalão Joan Miró (1893-1983), assim como os desdobramentos de suas produções na cena artística brasileira.
Anteriormente exibida na Casa Roberto Marinho em 2022, no Rio de Janeiro, a mostra chega a São Paulo com novidades, incluindo a imponente escultura “Viúva Negra” de Calder, com 3,5 metros de altura, além de trabalhos de Tomie Ohtake entre a seleção de artistas nacionais.
A curadoria de Max Perlingeiro, acompanhada pelas pesquisas de Paulo Venâncio Filho, Roberta Saraiva e Valéria Lamego, destaca a influência mútua em suas obras, ambas explorando a abstração com formas biomórficas, cores intensas e elementos lúdicos. “Historicamente, a ligação entre os dois artistas foi objeto de estudo de pesquisadores, com resultados surpreendentes, embora romanceada na maioria das vezes, e, ao longo de décadas, realizaram-se inúmeras mostras e publicações. É o que chamo de ‘a estética de uma amizade’ “, observa Perlingeiro. Além disso, a mostra inclui um panorama da arte abstrata e sua influência no Brasil com uma seleção de trabalhos de artistas como Abraham Palatnik, Aluísio Carvão, Antonio Bandeira, Arthur Luiz Piza, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Ione Saldanha, Ivan Serpa, Mary Vieira, Milton Dacosta, Mira Schendel, Oscar Niemeyer, Sérvulo Esmeraldo, Tomie Ohtake e Waldemar Cordeiro.
Como afirma Venâncio Filho: “Em ambos, Calder e Miró, a abstração não obedecia a um programa pré-determinado. Estava, antes, fundada na intuição e na imaginação e, portanto, aberta ao instável, ao acaso, ao indeterminado — algumas das características que, não por acaso, vamos encontrar no construtivismo brasileiro a partir dos anos 1950 e que vão estabelecer nossa contribuição original à arte abstrata, particularmente na relação entre forma e cor.”
Amizade e influências recíprocas
O encontro entre Joan Miró e Alexander Calder marcou o início de uma das amizades artísticas mais férteis e inspiradoras do século XX resultando em diálogos visuais que influenciaram profundamente a produção artística de ambos. Até a morte de Calder, em 1976, os dois artistas mantiveram uma relação próxima, cheia de influências recíprocas e admiração mútua. O encontro inicial em Paris, no final de 1928, foi um período essencial para o desenvolvimento artístico da época. Ambos possuíam estúdios na cidade e cultivaram uma forte conexão tanto pessoal, quanto intelectual, que promoveu uma das mais influentes esferas da abstração do século passado.
As tensões sociopolíticas da época, como a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial, impactaram significativamente suas vidas e trabalhos, levando-os a explorar o subconsciente e o cosmos em suas criações. Durante esse período, Calder já era conhecido por seu “Cirque Calder”, uma obra performática, enquanto Miró, cinco anos mais velho, se destacava como um dos principais pintores surrealistas, embora recusasse ser parte de qualquer movimento artístico específico.
A noção de um imaginário em constelação foi um princípio formal essencial para ambos, evidenciado pela maneira como construíam suas imagens em estruturas abertas, onde as formas flutuavam livremente no espaço ou estavam distribuídas uniformemente pela superfície da tela. Um exemplo que sublinha a interseção de seus trabalhos, são as Constelações de mesa e de parede de Calder de 1943, que ressoam com a série homônima de Miró de 1939-41, apesar de terem sido criadas de forma independente.
Apesar de suas personalidades contrastantes – Miró, tímido e introvertido, e Calder, extrovertido e performático –, os dois artistas formaram um vínculo profundo, descrito por Miró como uma “amizade de alma”. Eles compartilhavam a visão de que a abstração era um campo aberto para experimentações dinâmicas. Calder, rompendo com as tradições da escultura com seus móbiles e stabiles, trouxe uma dimensão lúdica e interativa à arte ao incorporar movimento e equilíbrio, enquanto Miró, com suas pinturas caracterizadas por formas orgânicas, linhas precisas e cores primárias, explorou o inconsciente e a imaginação.
A colaboração e as exposições conjuntas de Miró e Calder destacavam como suas obras se complementavam. As esculturas de Calder ativavam as qualidades espaciais inerentes às pinturas de Miró. Miró, por sua vez, explorava em duas dimensões muitas das sugestões presentes nas esculturas de Calder, criando um diálogo visual contínuo. Essa complementaridade fez com que ambos se tornassem pioneiros, influenciando gerações subsequentes de artistas na Europa, Américas e Ásia.
A partir de 1927, Calder começou a criar “cabeças-retrato” de arame torcido, ampliando os limites de sua prática escultórica. Essas obras tridimensionais inspiraram Miró, que incorporou técnicas similares em suas pinturas dos anos 1930, como Tête d’homme de 1935. Nos anos seguintes, tanto Calder quanto Miró simplificaram e ampliaram suas formas. As esculturas monumentais de Calder dos anos 1950 e 1960 ressoavam com as grandes telas de Miró dos anos 1970, onde signos elementares como corpos astrais, figuras e pássaros se tornavam mais densos e expansivos. A relação entre suas obras era evidente até mesmo em suas homenagens pessoais, como os poemas de Miró escritos após a morte de Calder, que carregavam uma imensidão de associações com o trabalho tardio do amigo.
Afinidades brasileiras
A arte brasileira, que nos anos 1940 começou a se consolidar mais decisivamente na abstração, não podia ignorar as contribuições desses pioneiros. Embora Miró nunca tenha visitado o Brasil, ele estabeleceu um vínculo com o país a partir de sua amizade com João Cabral de Melo Neto, um poeta pernambucano de muita afinidade com as artes plásticas brasileiras. A relação do artista catalão com este e outros poetas ganha destaque na exposição atual, que inclui uma sala com vitrines e monitores exibindo versões animadas de seis obras gráficas de Miró, quatro das quais resultantes de colaborações com poetas como o romeno Tristan Tzara (1896-1963), os franceses René Crevel (1900-1935) e Robert Desnos (1900-1945), além do autor pernambucano.
No caso de Calder, sua relação com o Brasil foi ainda mais íntima. Calder se apaixonou pelo Brasil e pelos brasileiros, fazendo grandes amigos e se encantando com o samba carioca, que ele considerava admiravelmente compatível com suas esculturas.
O norte-americano visitou o Brasil pela primeira vez em 1948, para exposições no Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro e no Museu de Arte de São Paulo (MASP). Em 1959, voltou para inaugurar uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e, no ano seguinte, visitou Brasília e o carnaval. Sua participação na 2ª Bienal de São Paulo em 1953, representando os Estados Unidos com 48 obras, se destacou especialmente por sua escultura móvel, que provocou reações diversas entre os artistas figurativos paulistas.
Calder foi fortemente influenciado pela arquitetura moderna brasileira, que conheceu através da exposição “Brazil Builds” no MoMA em 1943. Foi durante essa exposição que ele conheceu o arquiteto brasileiro Henrique Mindlin, que se tornou um importante promotor de sua obra, e o crítico de arte Mário Pedrosa, que escreveu um ensaio seminal sobre o artista, destacando sua intimidade artesanal com a máquina e sua sagacidade no contexto da industrialização pós-guerra.
A parceria entre Mindlin e Calder resultou em uma integração harmoniosa entre a escultura móvel e a arquitetura modernista brasileira, com os móbiles de Calder servindo como pontos focais em muitas residências modernistas de arquitetos como Jacob Ruchti, Miguel Forte, Jorge Moreira, Marcelo e Maurício Roberto, e Rino Levi. Calder doou vários móbiles ao Brasil, incluindo a “Viúva Negra”, uma das peças mais importantes da atual mostra. Em termos de tamanho, força e presença, a obra domina o espaço em uma sala exclusiva no Instituto.
Programação Pública
Acompanhando todo o período expositivo de “Calder+Miró”, o Instituto Tomie Ohtake oferece uma programação pública inteiramente gratuita, destinada a diversos públicos. Inspiradas pelas obras e processos criativos dos artistas, as atividades incluem ativações, oficinas práticas – como desenho de observação em movimento –, e uma atividade voltada à exploração sonora das obras. Entre os destaques, está um curso de dois dias sobre arte abstrata no Brasil, discussões sobre o encontro entre arquitetura e artes visuais no país, e a produção de artistas contemporâneos.
Serviço:
Calder+Miró
Local: Instituto Tomie Ohtake
Período expositivo: Até 15 de setembro de 2024
Ingresso: Gratuito