Um artista europeu do século 19 e uma artista brasileira do século 21, ambos com um interesse em comum: pesquisar e explorar o corpo no espaço e o movimento. Curada por Fernando Oliva, a mostra Degas, que abriu neste final de semana no Masp, traz um interessante diálogo entre o artista moderno e Sofia Borges que vem criando performances para se tornar fotografias há alguns anos, inclusive na última Bienal de São Paulo, com o Grupo Pineal.
O museu possui, em seu acervo, 76 obras do artistas – entre bronzes, desenhos e uma pintura – que foram mostradas juntas pela última vez há 14 anos. O ponto de partida para a nova leitura foi a icônica escultura Bailarina de catorze anos, de 1880. Degas conheceu Marie van Goethem, a estudante de balé retratada em na obra emblemática, durante uma de suas frequentes visitas à Opéra de Paris. “A escultura foi um choque para a sociedade por lembrar os autômatos, máquinas e robôs muito populares na época, e as cabeças de cera que eram feitas para identificar criminosos pela aparência – um método obviamente extremamente racista. É preciso lembrar também que o Degas pertencia a alta sociedade, seu pai era um aristocrata, e só o fato dele relacionar-se com Marie era um escândalo, e também um ato político”, explica o curador que destaca também as esculturas que retratam cenas de toilette. “Na segunda metade do século 19 as mulheres conquistaram o direito de intimidade e uma certa liberdade durante seus banhos. Estabeleceu-se uma nova ordem de higiene que, inclusive, reduzia a possibilidade de propagação de doenças. Degas passou, então, a retratar as mulheres banhando-se”, completa.
Marie ingressou no balé da Ópera aos 13 anos e era filha de uma lavadeira e de um alfaiate que viviam em constante estresse financeiro. Sabe-se uma de suas irmãs foi presa por roubar um cliente no célebre cabaré Chat Noir, localizado no bairro boêmio de Montmartre, em Paris. Depois desse episódio, Marie começou a faltar a várias aulas e acabou sendo dispensada da Opéra. Provavelmente como sua irmã, ela foi forçada à prostituição por sua mãe.
Assim como nas últimas exposições realizadas pelo museu, a ideia da equipe curatorial era mostrar um lado do artista moderno mais conectado com questões contemporâneas. Fernando Oliva puntua, por exemplo, as manifestações que as bailarinas da Opéra de Paris fizeram em 2019 numa tentativa de chamar a atenção para suas duras condições de trabalho — em especial, para o fato de que a prática do balé resulta em lesões corporais crônicas, sendo, por consequência, uma carreira que termina cedo. Uma das participantes, Heloïse Jocqueviel, de 23 anos, já considerada uma veterana para os padrões do meio, lembrou que a luta das bailarinas da Opéra era antiga “Estamos protestando não apenas em nome de nossas colegas que por aqui passaram nos últimos 350 anos, mas pelas que virão no futuro”, ressalta. Enfrentando uma rígida rotina de ensaios, as meninas se iniciavam no balé a partir dos seis anos de idade, muitas vezes para ajudar a sustentar a família. Ganhavam miseravelmente, não possuíam qualquer outro tipo de auxílio trabalhista e eram constantemente multadas por atrasos ou atitudes consideradas inadequadas. Também se viam obriga- das a gastar com aulas particulares, exigência da engrenagem altamente competitiva da Opéra. Havia, ainda, uma relação controversa entre as dançarinas e seus admiradores que foi retratada por Degas, por exemplo, em telas como Pauline e Virginie conversando com admiradores e Virginie sendo admirada enquanto é observada pelo Marquis Cavalcanti.
Paralelamente às manifestações citadas acima, o Musée d’Orsay apresentava uma exposição repleta de bailarinas representadas por Degas: “O museu, além de optar por não dar atenção ao problema dessas mulheres, manteve-se em uma posição de neutralidade em relação ao lugar privilegiado que Degas ocupava na sociedade parisiense e no elitizado sistema dessa casa de espetáculos”, explica o curador. “Na maioria das exposições sobre o Degas são breves as referências ao contexto de precariedade e exploração social e sexual em que aquelas dançarinas viviam”, completa. E é exatamente desta postura alienada que o Masp foge.
No entanto, o museu foi obrigado a cancelar a exposição original pela dificuldade de empréstimo e viagem de obras durante a pandemia do COVID-19. E a mostra programada teve que ser reduzida às obras já existentes no museu e o intercâmbio com Sofia – o que não é pouco. “A imagem da bailarina foi uma surpresa, pois, mesmo que inconscientemente eu sinto que fiz uma reparação histórica. Eu nem sabia dessa intenção do museu, mas fotografia com muita intuição trazendo todo o meu feminino para aqueles momentos com ela. Então, acho que esta reparação só poderia ter sido feita por uma artista mulher mesmo”, explica Sofia Borges que, em muitos momentos ressaltou a sombra da escultura usando o isolamento dentro da vitrine de vidro a seu favor! “A separação gerou muitos reflexos e desdobramentos. E eu achei bonito a composição da bailarina e sua própria sombra – é como se a sombra fosse aquela menina delicada e vulnerável do passado e a carne do bronze fosse a atual. Infelizmente a exposição prevista inicialmente não pode acontecer, mas acho que a revisão história acontece, aqui, por meio da imagem”, completa a artista. Depois de revelar tanto sobre a obra principal, Sofia partiu para as esculturas menores das bailarinas dançando – “Depois de muito estudo entendi que precisava cortar os pés delas para que elas realmente dançassem. A base da esculturas aterra demais!”, explica.
Todo conceito da mostra inicial, felizmente, também estará publicado no livro Degas: dança, política e sociedade que abordará as perspectivas políticas e sociais da sua produção, ressaltando questões em torno de trabalho, gênero, identidade e sexualidade e assumindo uma postura crítica sobre sua produção – tudo por meio de ensaios inéditos das pesquisadoras Ana Magalhães, Anthea Callen, Gabriela Gotoda, Isolde Pludermacher, Leïla Jarbouai, Leslie Dick, Norma Broude, Raisa Rexer e Susan Tenneriello.
DEGAS
Data: De 4 de dezembro de 2020 até 1º de agosto de 2021
Local: Masp
Endereço: Avenida Paulista, 1578, São Paulo, SP