Home Dicas AQA indica: as melhores exposições da London Art Week 2018

AQA indica: as melhores exposições da London Art Week 2018

por Flavia Gimenes

por Julia

O ARTEQUEACONTECE convidou a curadora e pesquisadora Flavia Gimenes para preparar um roteiro com as melhores exposições apresentadas em Londres, por ocasião das feiras Frieze London e Frieze Masters.

Confira aqui os destaques escolhidos por ela, junto de resenhas sobre cada mostra!

Doris Salcedo: Palimpsesto e Tabula Rasa
Visitação: até 11/11/18
White Cube Bermondsey: 144 – 152 Bermondsey Street, Londres. Entrada gratuita

O que é daqueles que sequer tiveram vida antes da morte?

Se famílias de romperam, ou afundaram inteiras, quem é que chora por elas?

Um piso de placas de pedras claras, retangulares, arenosas, ocupa a imensidão da sala norte da galeria. Em cada uma delas vemos ao menos dois grupo de nomes e sobrenomes escritos. Eles estão raspados, escritos um sobre o outro. É quase impossível sua identificação, a não ser pela água que escorre da terra, inundando apenas um deles. Tornando-o visível. Ainda que temporariamente. Como no movimento que caracteriza as marés, de cheia e de repuxo, os nomes emergem e submergem. O que nos separa dessas pessoas além do mar?

Palimpsesto foi exibida pela primeira vez no Palácio de Cristal do Museo Reina Sofía em Madri, em fevereiro deste ano, como um monumento de lembrança aos imigrantes da África e do Oriente Médio que morreram afogados durante a travessia para a Europa nos últimos vinte anos. Em Londres, a obra adquire uma atmosfera ainda mais melancólica, ainda que aparentemente solene, ao ser conformada em uma sala retangular, de luzes controladas e artificiais, dentro de uma galeria localizada em um país que diante da recente crise migratória, escolheu voltar-se para si mesmo, retirando-se da União Europeia com um primeiro objetivo de abster-se do seu compromisso coletivo para receber e assentar sua quota de refugiados.

Não é estranho, portanto, que Doris Salcedo, artista nascida em Bogotá (1958), tenha levado cerca de cinco anos para conceber esta obra em razão das dificuldades burocráticas para levantar os nomes dos afogados. Os primeiros nomes reunidos a partir da leitura de jornais internacionais, demandou o apoio de instituições governamentais e não-governamentais europeias que viam com desconfiança o interesse de uma artista colombiana por um tema considerado tabu, que sucessivos governos europeus tentam enterrar para que seja esquecido. A localização de grupos de mães que choravam por seus filhos (à semelhança de processos que ocorreram em trabalhos anteriores, como Disremembered, de 2014) foi crucial para que Doris Salcedo continuasse a dar materialidade à dimensão sentimental do luto. O restante do tempo foi empenhado na resolução de um problema de ordem técnica: por baixo das pedras distribui-se um intrincado sistema de canos pelos quais circula a água que é vazada através de pequenos e quase imperceptíveis furos, que torna possível a materialização de um choro coletivo, um choro como respiro. De longe alguns nomes adquirem uma luminosidade neon. Nomes de luz. Atmosfera etérea, eternamente na lembrança. Beleza estremecida de um corpo que emerge.

O luto materno e a violência de gênero, são sentimentos com o quais aprendemos a lidar, a conviver. Ainda que não possam ser superados. Em Tabula Rasa, segundo trabalho apresentado na galeria, Doris Salcedo apresenta cinco mesas que parecem estar inteiras, mas elas estão quebradas. Tão quebradas que já não escondem suas marcas, suas fraturas, ainda que sob uma luz soturna. Quando olhadas de perto, é possível vermos cada fragmento reconstituído, colado, remendado. As mesas de Tabula Rasa mal podem se sustentar em pé, ainda que assim permaneçam.

Martine Syms: Grand Calme
Visitação: até 20/10/18
Sadie Coles HQ: 62 Kingly Street W1, Londres. Entrada gratuita

A cabeça 3D de Martine Syms ocupa quase todo o painel de LED de 3,5 x 4 metros no centro da sala. Ela olha para a frente e aparenta fazer movimentos ocasionais com o rosto como empinar seu nariz, sacudir as bochechas e mexer a boca, exatamente como fazemos quando encaramos com ansiedade a tela do celular durante os longos segundos de espera por uma mensagem via WhatsApp ou DM. Martine Syms espera por uma mensagem de texto nossa, que deve ser enviada para +44 74499 896452 ali mesmo, dentro do ambiente expositivo. Não resisto e escrevo um simples Olá, meio tímido. Um caloroso Oiiii é recebido instantes depois, seguido por mensagens que estabelecem as regras do jogo da minha participação nessa conversa que só acontece se eu responder com limitados sim ou nãoMythiccbeing é sobre mim e não sobre você. Eu quero apenas conversar. 

As mensagens escritas em linguagem informal, espirituosa, e carregadas de intensidade e sexualidade atingem rapidamente uma dimensão íntima e pessoal, que contradiz nossa percepção racional de que aquela conversa segue um roteiro antecipado pela artista, que se desenrola conforme digito sim ou não. O envolvimento com a obra é inevitável. Podemos inclusive ouvir uma já familiar Martine Syms dizer em voz alta aquela mesma mensagem que acabei de receber no celular, ora de forma clara, ora em meio aos ruídos dos vídeos em looping apresentados no painel de LED.

Nascida em Los Angeles em 1988, Martine Syms propõe pensarmos sobre o corpo negro a partir de uma construção de apreciação estética que não se limita à denúncia de violência. Se sua exposição inaugural em Londres, em 2016, Fact & Trouble, construída com imagens de arquivos de sua família e de anônimos colocadas lado a lado com a de personalidades como Tyra Banks e Queen Latifa tinha como intuito compreender como as imagens de representação do corpo negro vinham sendo veiculadas na televisão e no cinema, Grand Calme nos oferece um vislumbre das vozes que habitam esses corpos negros. Suas angústias diárias, comuns a qualquer pessoa devo sair desse emprego?, ocorrem ao mesmo tempo em que afloram os desejos de autoindulgência preciso gastar algum tempo comigo, sentir um pouco de luxo, e o estado de alerta se mantém sobre sua condição se mantém elevado Eu queria me sentir tranquila e não com um medo constante.

Completam a exposição Relax your jaw, uma colagem de stills de filmes caseiros próprios ou apropriados, com típicas cenas urbanas que complementam a narrativa de MythiccbeingAunty, um conjunto de treze cadeiras de assentos com faixas entrelaçadas, de cores vibrantes, com mensagens escondidas people who aren’t friends or lovers or exes; e fluxogramas em vinil instalados nas quatro grandes paredes da galeria. Chamados de Threat models, os fluxos trazem a identificação inequívoca de instâncias de violência contidas em uma sequência de eventos (dos códigos de Mythiccbeing talvez?) que apontam que perguntas aparentemente expontâneas como estou ficando gorda? podem estar relacionadas a um contexto de dismorfia corporal provocado por situações de violência doméstica e preconceitos com formas dos corpos de mulheres negras . Odeio como alguém às vezes se infiltra em nossa vida. De repente você se pega pensando nessa pessoa, imaginando o que ela está fazendo; e quer conversar, compartilhar suas coisas. A frase de Martine Syms dá o tom de Grand Calme que permanece ao sairmos da galeria.

Tania Bruguera, 10,142,926 (10,143,111, em 03/10)
Visitação: até 24/02/19
Tate Modern: Bankside, Londres SE1 9TG. Entrada gratuita

Um aroma doce no ar mexe com nossos sentidos assim que entramos no Turbine Hall. Doce e inebriante, que entra pela boca e enjoa o estômago. O chão que até pouco tempo estava coberto por um alegre carpete colorido com a instalação do coletivo Superflex, agora jaz, coberto por um contrapiso preto, com exceção de uma zona cinza na ala leste, na qual antes de adentrarmos, precisamos retirar os sapatos. Eventualmente, precisamos deixar tudo o que temos para trás. A zona cinza, térmica, marca o calor do corpo que o toca, registrando uma mancha, um estigma, ou um rastro: primeiro os pés, e à medida em que sentamos, os glúteos, depois troncos e membros. Em princípio, somos atraídos pela ideia de gravarmos temporariamente a forma do nosso corpo naquele espaço, como se tirássemos uma radiografia. No entanto, dependemos do apoio do texto para compreendermos que não se trata de nós – ao menos não individualmente. O piso cinza esconde uma enorme imagem que aguarda ser revelada: o retrato do imigrante sírio Yousef, acolhido pela comunidade do entorno da Tate.

Uma pequena sala branca ao lado, em formato de prisma, revela-se a fonte do aroma mentolado. Antes de entrarmos, somos marcados na pele por um carimbo de tinta vermelha, de doze dígitos, que consiste no título da exposição. 10,142,926 (no dia 1o. de outubro) corresponde ao total de imigrantes em 2017, somados ao número de imigrantes que morreram até aquela data. A expectativa de que este número cresça a cada dia é por si só perturbadora e deveria ser suficiente para nos fazer chorar de forma expontânea. Mas Tania Bruguera não parece convencida de que isso seja suficiente, e vale-se do vapor de um composto orgânico que ao ser inspirado, provoca uma incontrolável vontade de chorar.

Há algumas belas nuances na instalação proposta por Tania Bruguera que remetem à difícil e extenuante jornada de um imigrante até chegar no destino em que pedirá refúgio: a  longa caminhada, os controles de fronteira, a desorientação, a falta de recursos, a fome que corrói o estômago. Todos esses elementos estão presentes na instalação (o longo percurso desde a entrada na Turbine Hall, as regras para entrar em cada espaço expositivo, a numeração carimbada na pele, o som em baixa frequência, repetitivo e desconfortável, que combinado com o composto orgânico, provoca dor de cabeça e uma sensação de constante opressão). Talvez o mais preocupante seja justamente o da sala que exala o vapor (ou gás?). É inevitável não pensarmos nas crueldades humanas – e de estado – que muitos desses imigrantes serão submetidos ao saírem ou serem expulsos de sua terra, em busca de um lugar em que possam viver com alguma dignidade.

A morte, a violência e o esquecimento são o destino de muitos imigrantes, como também recorda Doris Salcedo em Palimpsesto (leia mais aqui). Ainda assim, Tania Bruguera nos recorda que a construção utópica nasce a partir do esforço coletivo, como o iniciado por Natalie Bell, líder comunitária responsável pelo acolhimento do jovem Yousef. Tania Bruguera finaliza sua instalação nomeando o prédio original da Tate (Boiler House) de Natalie Bell durante um ano, gesto que coloca a homenagem ao esforço coletivo em contraste com o hedonismo individual do magnata que nomeia a ala mais recente do museu (Switch House) de Blavatinik. O esforço coletivo presente em trabalhos anteriores da artista cubana é a chave para que o retrato de Yousef seja revelado – ainda que por um breve instante.

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