No auge dos anos 1990, o jovem Dalton Paula cresceria em Goiânia quando se separou pela primeira vez com a música de Itamar Assumpção que dizia: “Eu tenho cabelo duro; Mas não o miolo mole; Sou afro brasileiro puro; É mulata minha prole”. Ele tinha apenas 14 anos quando encontrou, na música, algumas das referências afro-brasileiras que o transformam no homem e artista que é hoje. “Foi o Itamar que me apresentou Naná Vasconcelos e tantos outros músicos do Manguebeat e Maracatu que amo hoje, como vocês viram na trilha que fiz para o ARTEQUEACONTECE“. Dalton também lembra da presença marcante de Anelis Assumpção, filha de Itamar, na TV Cultura. “Era um programa totalmente diferente, que trazia discussões sobre representatividade para os jovens”.
Tudo pareceu fazer sentido, então, quando ele recebeu a ligação de Isabel Malzoni, idealizadora da Editora Caixote: ela estava em contato com Anelis para publicar uma série de livros infantis que Itamar havia escrito, mas nunca teve a oportunidade de publicar, e gostaria que Dalton desse vida aos personagens criados pelo multiartista: um boto cor-de-rosa, galinhas, um gato, um cachorro, uma cabra, um peixe boi, uma baleia, entre outros. Homem-Bicho, Bicho-Homem mostra características de alguns animais e já aponta para um assunto que não preocupava adultos nas décadas anteriores, mas hoje é pauta indispensável na educação: pode o bicho homem comer outros bichos? Dalton brinca com a lição da história e pinta uma espécie de arca de Noé contemporânea composta por um ônibus escolar em defesa do suco verde!
Para construir as cativantes figuras, o artista mistura técnicas – nanquim, bico de pena e aquarela – e traz elementos simbólicos como o óculos que Itamar costumava usar ou o chapéu, as rosas e o colar típicos da figura do malandro ou de Zé Pilintra – entidade da Umbanda patrona dos bares, locais de jogo e sarjetas. Vale lembrar que Assumpção foi um dos artistas identificados com as posturas ditas “vanguardistas” ou “marginais” ao misturar samba com rock e funk, entre outros ritmos, em letras impregnadas de sátira e crítica social. A negritude, a marginalidade e a loucura marcam músicas que estão vinculadas à sua própria imagem magra e enigmática. Com isso em mente, é interessante notar, ainda, que a versão do boto de Dalton, geralmente todo “cor-de-rosa”, aparece com a pele de diferentes tons misturados. O artista parece reafirmar, aqui, que nenhuma espécie pode ser definida pela cor, dando uma importante lição anti-racista que certamente Itamar aprovaria.
A rima e o ritmo das canções também aparecem na narrativa infantil adaptada por Alice Ruiz S., parceira de trabalho de Itamar por muitos anos. Esta é apenas a primeira de uma série de quatro publicações que a editora vai lançar ainda este ano.
Anelis vem arrumando, catalogando e digitalizando todo acervo e memória do pai desde sua morte. O resultado pode ser visto no museu virtual MUITA (Museu de Itamar Assumpção) que ela lançou, em 2020, e onde está expondo dois retratos pintados por Dalton: o de Itamar e o de Serena Assumpção, filha do músico que faleceu precocemente vítima de câncer.
A potência dos retratos de Dalton homenageiam as duas figuras com o queixo para frente, olhar altivo e digno. “Como um espelho que reflete a ancestralidade, os cabelos em folha de ouro de Serena e Itamar são parte da representação de dignidade mencionada na poética do artista que, através de sua visão pontiaguda, valoriza a transmissão de saber dos mais velhos aos mais novos, enxergando as referências negras do passado nos rostos das lideranças atuais e existentes em diversos quilombos brasileiros”, pontua o texto da mostra. A plataforma está disponível em português, inglês, alemão e iorubá.