Imagina entrevistar Oscar Niemeyer e Lygia Pape no mesmo dia? Eu teria uma síncope nervosa, certeza. Foi isso que o curador Hans Ulrich Obrist fez, e ele passa bem. Era 1999 quando o intelectual suíço veio pela primeira vez ao Brasil. Ele estava em São Paulo para ministrar um workshop sobre o futuro das cidades e resolveu pegar uma ponte árera para o Rio de Janeiro: chegou às 8 da manhã e começou uma maratona de visitas em ateliês para entrevistar mentes criativas daqui. Era o início de um projeto longo que resoltou no livro Hans Ulrich Obrist: Entrevistas brasileiras, lançado no final do ano passado pela editora Cobogó!
Obrist argumenta que o futuro é contruído no presente e, nesse processo, fragmentos do passado não podem ser esquecidos. Portanto, torna-se cruial regisrar fala e pensamentos dos criativos presentes nesse livro: todos nascidos antes de 1959, ano que precede a inautugração de Brasília, “momento que consolidou a revolução estética do Modernismo brasileiro e estimulou mudanças radicais em diferentes áreas do conhecimento”, como define a editora Isabel Diegues. A coleção de conversas deste livro trata-se, portanto, de um protesto contra o esquecimento.
O curador opta por entrevistar não somente artistas, mas intelectuais de diversas áreas. E sempre busca compreender como eles se relacionam com literatura, música, poesia, arquitetura, filosofia, antropologia, etc. Existem algumas questões que Obrist sempre aborda: como o criativo se encontrou pela primeira vez com a arte; quando ele entendeu qual seria sua linguagem ou quando ele sentiu que a obra estava sólida o suficiente; quais foram os momentos de epifanias e censura durante suas carreiras; quem são os ídolos do entrevsitado e o que ele sugere para os jovens; e, por fim, quais são os projetos não realizados, sonhos e utopias de cada um.
Você poderá conferir, por exemplo, uma deliciosa entrevista com Caetano Veloso, onde ele conta sobre sua relação com o rock in roll; sobre como ele escolheu o nome da irmã, Maria Bethânia; sobre como o João Gilberto e Clarice Lispector foram fontes potentes de inspiração; sobre a parceria com Gilberto Gil; sobre sua relação com Hélio Oiticica e o conceito de Tropicália (a obra e a canção); sobre como “a bossa nova é foda”; sobre a necessidade de subverter a hierarquia do gosto; sobre sua participação nas sessões de terapia conduzidas por Lygia Clark; e, sobre a vontade de fazer cinema.
Já no papo com Iole de Freitas, a artita comenta o começo de sua carreira fazendo experiências com a fotografia e super-8, nas quais a representação do corpo era tema principal; os aprendizados com as impovizações ao lado de profissionais da música e dança como Walter Smetak e Raquel Levy; a admiração por coreógrafas como Mary Wigman e Marta Graham; o interesse pelo movimento, equilíbrio, leveza, pesos, luz, imagens refletidas e o oposto (superfícies opacas) que aparecem desde os primeiros trabalhos de fotografia e performace até nas grandes instalações atuais que dialogam, ainda, com elementos arquitetônicos do espaço expositivo; a relação com o amigo, parceiro e ex-marido Antonio Dias; a experiência no universo do design ao lado de Clino Castelli e Hans von Klier; seu primeiro trabalho de paisagismo ( despertando o interesse pela presença arquitetônica em relação ao corpo que ela já estudava!); o filme feito na Cidade de Deus com a participação de psicanalistas e filósofos; a descoberta do campo tridimenssional usando fios, tubos, serras e tecidos nos anos 1980; a admiração pelo Construtivismo russo e arquitetos como Tadao Ando, Frank Gehry e Álvaro Siza; e mais.
Se você é fã de Paulo Herkenhoff, vale ler a entrevista na qual o curador fala sobre o racismo no país e na academia apresentando obras de nomes importantes para a história da arte afro-brasileira como Manuel Messias, Maria Lídia Magliani, Mestre Valentim, Arjan Martins, Rosana Paulino, Jaime Laureano; expõe, ainda, o trabalho de Rubem Valentim, que superou o reducionismo eurocêntrico dos brasileiros e reposicinou o candomblé como um sistema de valores complexo e único; comenta sobre os Ashaninkas e também sobre projetos como Vídeo nas aldeias, comandado pelo antropólogo Vicent Carelli, que disponibiliza tecnologia de filmagem para nativos; explica os conceitos da Bienal da Antropofagia, em 1998, (e expõe casos dos bastidores!); discorre sobre o movimento Neoconcretista, sobre a loucura e sobre a nossa dificuldade em definir o que é “ser brasileiro”; comenta, ainda, sobre a história da Bienal de São Paulo e sobre figuras cruciais para a crítica no Brasil como Mario Pedrosa, Frederico Morais, Aracy Amaral e Marta Traba.
Herkenhoff fala, ainda, sobre o trabalho e a relevância de Emanuel Araújo ( também presente no livro) que fundou o Museu Afro Brasil e criou um dos primeiros pôsters para Caetano Veloso. Todos criativos do livro são nascidos no mesmo Brasil ( ou escolheram o país como lugar de inspiuração). Portanto, era previsível que as conversas ecoassem e se cruzassem. “Não sou eu apenas entrevistando uma pessoa. Somos todos conversando juntos”, coclui o curador.