Este texto foi originalmente escrito para a exposição “Leonilson Drawn 1975–1993” do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, em 2022, e gentilmente cedido por Leda Catunda para o AQA.
“Minha alma inunda-se de uma serenidade maravilhosa, harmonizando-se com as doces manhãs primaveris que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só e abandono-me à alegria de viver nessa região criada para almas iguais à minha.”
Johann Wolgang Goethe em “Os Sofrimentos do jovem Werther”
Você, o que mais deseja na vida? Se fosse para uma ilha deserta e só pudesse levar uma pessoa, quem levaria? E quais seriam os três pedidos, caso achasse a velha lâmpada? Quem acredita que estas são questões fabulosas com soluções mágicas vindas lá da terra do nunca, está um tanto enganado. O desejo está na base de toda criação, na sua ausência não há por que começar nada. Seja na arte ou na ciência, é o desejo, quer intuitivo ou consciente, que move o sujeito na direção do inédito, daquilo que não foi inventado ainda. O desejo nos move desde a mais tenra idade por misteriosos caminhos, que resultarão naquilo que se entende por destino, mas que é, na verdade, uma mistura bem temperada entre desejos e escolhas. O porquê de serem apenas três os desejos que o gênio pode oferecer ou o motivo de uma única pessoa ser permitida na charada da ilha deserta, está ligado ao dilema da escolha.
Escolher é abandonar. No caso do artista, deixar para trás o que não interessa e arriscar, investindo numa visão particular e pessoal do mundo e de sua própria existência. Apostar em todas as frentes não só é uma tarefa impossível, como também inutilmente dispersiva. Para que o mergulho seja vertical e profundo é essencial concentrar energias e organizá-las em torno de uma intenção única e verdadeira. O desafio que se apresenta é fazer as escolhas para afinar essa intenção. Em seguida, definir o que se pretende realizar e qual a melhor maneira de fazê-lo. Por fim, potencializar a poética, tornando-a contundente e eficaz entre tentativas, cálculos, elucubrações e o estabelecimento de critérios próprios. Assim o artista organiza seus desejos. O artista organiza o desejo do mundo.
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O tempo foi aquele que marcou o fim de vinte anos de ditadura militar no país, um tempo sem liberdade de expressão e forte repressão. As manifestações possíveis iam pouco além dos tradicionais: carnaval e futebol. Museus e instituições de arte configuravam um cenário triste e anêmico e contavam-se as galerias com os dedos de uma mão só. O vislumbre da possibilidade de eleições diretas e da retomada das liberdades democráticas trouxe a todos, naquele período, uma real euforia do porvir. Entusiasmado Leó, como era chamado, esteve entre um milhão e meio de pessoas no histórico comício das “Diretas já” em abril de 1984, em São Paulo.
O circuito de arte, antes contraído sob a mão pesada da censura, sofrendo embargos das delegações estrangeiras à Bienal, começava a dar sinais de uma vigorosa retomada. Novos artistas surgiram de diversas partes do país com a força da vazão súbita de muita água represada. A grande mostra “Como vai você geração 80?” realizada no Parque Lage no Rio de Janeiro em 1984, contou com a participação de 123 artistas e teve uma abertura festiva e retumbante. A Bienal de São Paulo de 1985 recebeu, entre diversos de artistas internacionais, muitos dos artistas italianos e alemães que faziam parte na época da “Transvanguarda”, com a presença de seu idealizador Achille Bonito Oliva, sintonizando desta forma a cultura brasileira com circuito internacional novamente. Leonilson participou de ambas, com o destaque que lhe cabia por ter se tornado “o mais conhecido” entre os contemporâneos no eixo São Paulo-Rio, devido ao sucesso junto à mídia das exposições simultâneas que realizou em 1983. Através da força das suas imagens bem como da personalidade forte e atitude assertiva, Leonilson já influenciava inúmeros artistas que começavam a pintar nesse momento.
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Leonilson nasceu pronto. Todo artista confia naturalmente no fato de ser um sujeito especial, com algo muito inédito a manifestar, mas a certeza que ele demonstrava sobre isso era realmente espantosa. Enquanto muitos colegas ensaiavam afirmações imprecisas e subjetividades em seus trabalhos, Leonilson declarava sua poética de forma eloquente, seguro de suas escolhas nas pinturas, nos desenhos e também nas montagens das instalações. Conhecia bem o chão que estava pisando e, para além de sua arte, criava em torno de si uma atmosfera peculiar através do seu jeito de ser e de sua maneira de se deslocar pelo mundo, gerando intuitivamente as devidas circunstâncias que mais tarde contextualizariam sua trajetória. Uma autoconfiança espontânea que, em parte, vinha também pela convivência muito próxima com artistas experientes como Antonio Dias e Antonio Peticov com os quais esteve em Milão, e Jorge Guinle, nas frequentes idas ao Rio de Janeiro. Estendia pontes para o mundo ao seu redor e se encantava com o generoso leque de possibilidades que a vida lhe oferecia, principalmente com as possibilidades de intercâmbios e viagens que o levassem com o impulso fragoroso das mudanças rápidas. Atualizado, assinava diversas revistas, visitava e recebia amigos e artistas de muitos lugares diferentes. Esse trânsito intenso alimentava seu repertório sobre arte bem como seu espírito romântico, fazendo surgir novas amizades e parcerias como aconteceu com Albert Hien, artista alemão que conheceu na Bienal de 1985. No ano seguinte trabalharam juntos na Alemanha, colaborando em esculturas e instalações. Realizando em seguida uma exposição na galeria de Walter Storms em Munique.
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Obsessivo é um bom termo para definir a forma de trabalhar de José Leonilson. Dono de uma mente irrequieta que parecia nunca desligar, começava logo de manhã bem cedo no ateliê que ficava na garagem do sobrado onde morava, localizado próximo a casa de sua mãe. Pintava de pé apoiando a tela sobre uma mesa alta de estrutura de ferro, feita sob medida para tal propósito. À noite, já meio cansado, algumas vezes seguia ainda desenhando na mesinha do quarto onde ficavam blocos de papel de vários tamanhos. No início usava lápis de cor, depois passou a usar uma canetinha preta. Era muito raro que fizesse um desenho só, normalmente fazia conjuntos de 3 a 5 de cada vez. Num estado de concentração singular, porém relaxado, elaborava desenhos com aguçado poder de síntese com traços claros e definidos, sem gestos desperdiçados. Com uma medida precisa organizava imagens quase sempre narrativas, figurativas, simbólicas. Essas imagens eram muitas vezes acompanhadas de textos igualmente sintéticos com forte caráter poético. O texto em letra de forma, como aquela utilizada nos bilhetes, não necessariamente auxiliava na compreensão, outrossim ampliava os sentidos criando uma figura duplicada, resultado da soma do que se vê com aquilo que se lê. A combinação desses elementos originava desenhos alegóricos, ricos em metáforas, com imagens cujos sentidos se alteravam dependendo do modo como fossem dispostas. Construía assim, uma coleção de signos, como quem elabora um código para mensagens secretas. Imagens que retornavam a todo instante em seus trabalhos como: o coração, pontes e escadas, navios, garrafas e espadas. Próximas num certo sentido das criadas por Joaquin Torres Garcia, porém organizadas em favor de uma narrativa extremamente pessoal, gerada para comunicar segredos e conflitos sentimentais. Resultando assim em metáforas, como a contida na figura recorrente do pequeno vulcão em erupção, evocando a potência de acontecimentos explosivos.
Para as pinturas era necessária mais energia. Por serem compostas por mais elementos implicavam mais risco, um número maior de decisões e mais tempo de organização. Eram feitas da maneira mais direta possível, sem vai e vem, com gestos básicos, dispensando a necessidade de camadas ou recobrimentos. Tendo uma imagem preestabelecida em mente, arrastava a tinta sobre a tela já preparada com um fundo de cor lisa. Seguia assim conformando a figura à mesma medida em que espalhava a tinta, usando o pincel como uma vassoura. Era um processo contínuo, ininterrupto. O fazia de uma só vez, do começo até o final. Obtinha enorme regozijo com os resultados na finalização de cada grupo de pinturas e logo as espalhava pelas paredes da casa para melhor observá-las e para que pudessem ser vistas por todos.
O trabalho tinha um forte caráter diário e retratava a realidade que ele experimentava no cotidiano, incluindo sonhos, amores, filmes, dores e toda sorte de estímulo que movimentasse seu espírito. Os personagens eram pessoas que cruzavam seu caminho, transmutados com suas histórias pessoais para dentro da dimensão subjetiva das pinturas, para viverem ali uma nova existência aperfeiçoada em intensidade, numa narrativa particularmente sentimental, com os matizes de um bom filme cult.
A elaboração de uma identidade mais introspectiva e profunda veio com o tempo. Reflexões sobre solidão, dissonâncias amorosas e angústias tornaram-se o foco. Num cenário mais intranquilo passou a elaborar nas imagens o estranhamento diante do desconhecido, o assombro pelo confronto súbito com o inesperado. Em consequência, neste período surgiu nos trabalhos um amplo espaço ao redor das figuras. Com o dilatamento drástico do espaço, as apequenadas figuras passaram a habitar um vazio, que podia ser lido como a representação do incerto, da realidade de um sujeito que flutua, vagando sem ter o chão aos seus pés.
A mudança foi gradativa, contínua, um passo após o outro. Contudo, o diagnóstico de HIV positivo no teste que realizou em 1991 foi certamente o fator determinante para o processo de aceleração da síntese poética na sua produção. A perspectiva trágica do abreviamento de seu tempo o conduziu por caminhos onde os procedimentos artísticos cada vez mais refletiam sua paisagem interior em detrimento do mundo exterior. Em obediência à sua intuição de artista e diante das novas circunstâncias, passou a empenhar-se na reafirmação do discurso que desenvolvera até então, dedicando-se perseverantemente a adensá-lo. As experimentações do início foram refinadas e a escolha dos suportes tornou-se mais precisa: tecidos macios como o feltro e o veludo, moles e finos como a seda de tafetá, ou também os de uso pessoal, tal como lençóis listrados, fronhas bordadas e camisas de algodão. Destaca-se sobretudo o aproveitamento da visualidade do voile, obtendo trabalhos primorosos que apelam aos sentidos pela suavidade da transparência e a delicadeza da textura, associadas à precisão do bordado com linha preta e o significado potente das breves palavras.
Apesar de Leonilson ter realizado experiências anteriores de apropriação de objetos como botões, pingentes, entre outros, foi a partir da costura e do bordado em tecidos moles, que sua obra se torna mais escultórica e volumétrica. Nas construções de peças que mimetizam vestuário – como no caso da sacola do “Mentiroso”, na longa saia verde clara no “Fertilidade, coerência e silêncio” e nas cortinas, ou talvez vestido no “O Penélope” – sua obra ganha sugestões próprias, resultantes da associação com o significado e a forma de cada objeto. Dentro do ritmo um tanto quanto veloz para a frágil condição física em que se encontrava, concebeu o que veio a ser seu último trabalho exposto em vida. A instalação “Sobre duas figuras”, na Capela do Morumbi, foi toda composta com essas peças que poderiam ser chamadas de objetos-moles. Camisas de algodão espelhadas, uma normal costurada em outra de ponta cabeça, outras duas com mangas tão longas que arrastavam no chão revestiam 3 cadeiras e um suporte para cabides, espalhados pelo espaço rústico da capela formando uma cena silenciosa. A imagem desses objetos associada ao significado dramático dos textos bordados que lhes davam título – “Do bom coração”, “Da falsa moral”, “Lázaro” e “Los delícias” – promovia um significado poético ambíguo, oscilante, denso. A arquitetura singela da velha igrejinha e seu altar impregnavam a instalação da sacralidade dos rituais católicos intensificando sobremaneira a teatralidade do conjunto. A idealização do projeto foi cuidadosamente desenhada num caderninho que serviu de guia para a montagem no local. Sem forças, ele não chegou a visitar a exposição, vendo-a apenas através de registros fotográficos.
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Observando a repercussão positiva da obra após sua morte e o modo como vem sendo apreendida e apreciada, é possível constatar a efetiva aderência que seu discurso poético alcançou na posteridade. Este não é um fenômeno comum, algo que aconteça a todo artista que falece deixando o trabalho artístico de uma vida, pelo contrário, o esquecimento gradativo costuma ser o caminho mais comum. Para que se produza tal identificação por parte do público é necessário que haja uma sintonia especial, envolvendo questões pulsantes relativas ao seu tempo e momento. É preciso que exista algo verdadeiramente significativo através do qual o observador possa se reconhecer, algo que ao lhe ser revelado venha de encontro com sua percepção do mundo. O desejo de compartilhamento por parte da coletividade, de seu diário imagético contendo a refinada elaboração de sua vivência, sentimentos e confissões, confirma tal sintonia.
Encantado pelo ideal do amor romântico, Leonilson ao ler “Os sofrimentos do jovem Werther” de Goethe na primeira metade dos anos oitenta, se identificou talvez mais do que gostaria. Foi impactado pela sinceridade e o sofrimento do jovem, causado pela dor do amor não correspondido. O caráter avassaladoramente romântico do texto, do personagem que sucumbe ao destino sem armas para enfrentá-lo, de certa maneira, teve um paralelo na realidade com surgimento dos primeiros casos fatais de Aids. Esse fato trouxe a perspectiva antecipada da tragédia da morte precoce e passou a assombrar seu imaginário desde aquele momento.
Após sua morte tornou-se algo diferente da pessoa que costumava ser. Uma persona, como dizem. Fato que ocorre com muitos artistas, que pela admiração conquistada pela excelência de seus trabalhos, passam por uma forte idealização. Existe agora com uma personalidade livremente deduzida, romantizada, que nasce da soma do esforço para imaginá-lo, por parte de quem não o conheceu, com o esforço de quem o conheceu e luta para não esquecê-lo.
Leda Catunda, Março/2020