Na produção de Kerry James Marshall, as perguntas sobre questões raciais e sobre a pintura são recíprocas, num entrelaçamento entre experiências pessoais, sociais e históricas. O questionamento sobre a ideia de representação e a crítica à história da arte são formulados ao mesmo tempo em que as pinturas discutem como os negros foram representados e tratados na história social.
Na própria construção das obras, há um nexo com a discussão social que interessa ao artista: Marshall utiliza diversos tons de preto na construção das figuras, não apenas como sombra ou fundo, mas como uma “cor ativa”. Além disso, há toda uma retórica no uso da palavra “preto” no movimento negro norte-americano: black power, Black Panthers, black is beautiful, black aesthetics [1].
A formação da obra de Marshall se deu nos anos 70, no sul dos Estados Unidos, mas o artista começou a expor regularmente só nos anos 80, em um contexto em que diversos artistas trabalhavam com imagens derivadas de outras imagens [2]. Marshall recorre aos mais diversos recursos sedimentados ao longo da tradição da pintura para rever criticamente as narrativas da história da arte em relação ao presente. Da perspectiva linear a uma gestualidade já codificada, das escalas de cinzas – como nas pinturas “grisaille” do final do século XVIII – às cores ácidas tão presentes na vida contemporânea, Marshall transita com muita liberdade entre os mais variados registros de pintura, afirmando, simultaneamente, diversos recursos, estilos e múltiplas narrativas possíveis sobre os negros dentro dessa história.
O foco da produção de Marshall na pintura nos leva a pensar sobre os limites das narrativas sobre os negros nessa mídia – seja pelo número reduzido de pintores negros ao longo da história, seja pelas imagens reiteradas de subalternidade dos negros na tradição pictórica (obviamente como reflexo da vida social). Sua obra propõe imagens de sociabilidade, afeto e autonomia que não foram produzidas sobre os negros ao longo do tempo.
Ao mesmo tempo que são imediatas em seus posicionamentos, as obras de Marshall indicam as diversas mediações históricas que o artista encampa. Ele opera dentro do reconhecimento da história da pintura, e de sua condição de se tratar de imagens constituídas e informadas por outras imagens, com seus esquemas, códigos e convenções particulares. As descrições de acontecimentos cotidianos, coincidem com uma reflexão sobre a história da pintura, repensando as possibilidades narrativas de ambos os campos.
A relação com a história da arte, no entanto, não é apenas de citação: para cada trabalho ao qual Marshall recorre ao passado, atualiza correspondências no presente, seja em acontecimentos sociais ou das atuais formas de circulação e produção de significados. O tratamento individualizado com os referentes usados em sua pintura não é uma mera inclusão da figura do negro nos esquemas clássicos da história da arte, mas sim uma reflexão crítica sobre este campo que, além da mera denúncia, expande suas possíveis relações.
Partir das narrativas dominantes da pintura ocidental não deixa de lado as discussões identitárias, nem as reduz a qualquer essencialismo. A escala de muitas dessas obras aponta para sua vocação pública – o destino mais esperado para os trabalhos de Marshall é o museu, lugar onde a crítica à história da arte se faz mais incisivamente com a inserção de figuras negras na própria discussão sobre a tradição. O trabalho de Marshall, assim, não se reduz apenas a uma política de reparações.
O modo como diversas de suas pinturas tematizam espaços, dispositivos e estruturas que tratam justamente de visualização, visibilidade e representação está associado a uma discussão mais ampla sobre a natureza da representação. As figuras de Marshall estão “empenhadas” em verem e em serem vistas – eventualmente na própria ação de pintar: espelhos, vitrines, palcos e outros dispositivos de visualização e reflexão demonstram como as imagens, sua produção e exibição funcionam [3].
Assim como esses mecanismos são discutidos na obra, há uma noção ampla de “beleza” no trabalho de Marshall que é, ao mesmo tempo, uma estratégia de sedução – pelos diversos recursos pictóricos da construção das obras – e crítica – historicamente, as imagens produzidas sobre os negros não estavam ligadas à ideia de beleza. Em entrevista ao Art 21, o artista diz: “Quando as pessoas pensam em beleza, pensam em signos de beleza, mas é muito mais profundo e complicado do que isso. A maneira como eu penso em beleza é: um estado de ser que tem algum fascínio, ou como algo que apresenta algum fascínio para você como observador. É certamente algo cativante. Beleza é uma experiência fenomenológica e um componente básico disso é a dúvida. Eu não acredito que simplesmente porque eu sou um artista ou porque alguém é um artista que as pessoas têm que dar atenção às coisas que faço. Temos que nos esforçar para ganhar a atenção do nosso público e uma das maneiras de conseguir essa atenção é através de experiências fenomenológicas que sejam fascinantes” [4].
A discussão racial na obra de Marshall, para além de qualquer mito de origem, indica múltiplas de formas de ser, num entrelaçamento entre uma variedade de sujeitos, estilos, narrativas pessoais, histórias, culturas, tradições e movimentos sociais. Sua produção “fagocita” a tradição ocidental para devolver novas possibilidades de sociabilidade e de afeto, justamente por inserir no cânone clássico a presença do corpo negro com suas singularidades.
Considerando as diferenças em relação ao contexto norte americano – ao qual essa obra responde em seus temas e em sua alta circulação institucional – parece hoje fundamental pensar a obra de Kerry James Marshall no contexto brasileiro. O artista promove uma discussão sobre uma “produção negra” que não apenas reitera as imagens que circulam na mídia, ou nos livros de história, para propor a presença de figuras negras em situação de sociabilidade e autonomia. Não se trata, em absoluto, de sanar discussões sociais que deveriam ser resolvidas no campo político, mas, sim, a partir de uma discussão sobre a própria história da pintura, repensar a situação social dos negros. Marshall, assim, nos propõe experiências mais complexas – tanto em relação à arte, quanto à vida social.
[1] Podemos encontrar o uso do preto como retórica da discussão racial no campo da arte na produção de outros artistas como norte americanos como Kara Walker, Glenn Ligon ou Lorna Simpson, por exemplo .
[2] Ver entrevista entre Kerry James Marshall e Helen Molesworth http://www.artecapital.net/entrevista-213-kerry-james-marshall
[3] Além dos diversos títulos e composições das próprias pinturas, as exposições de Marshall têm títulos que remetem a visibilidade e visualização como “On display” ou “Look see”
[4] Entrevista ao Art21 https://art21.org/read/kerry-james-marshall-rythm-mastr/ (Tradução Livre)
Leandro Muniz é artista e curador. Estudante de artes plásticas na USP e assistente de curadoria no Pivô. Foi curador das mostras Tropical extravaganza: Paola e Paulina, SESC Niterói (2018); Disfarce, Oficina Cultural Oswald de Andrade (2017) e I’II be your mirror, no Espaço Breu (2017), onde organiza o projeto “Conversas no BREU” em parceria com Rafaela Foz. Como artista, já expôs em espaços como o DAP Londrina, Espaço das Artes USP, Sesc Ribeirão Preto, Salão Anapolino, Salão de Piracicaba, Fábrica Bhering e Ateliê397.