Por ocasião do 36o Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o ARTEQUEACONTECE sentou para uma longa conversa com a curadora desta edição da mostra, a sergipana radicada em Minas Gerais Júlia Rebouças, seguida de uma visita acompanhada por ela pela exposição! Confira aqui os melhores momentos dessa entrevista.
Julia Lima: Como você chegou na idéia de Sertão, a essa alegoria que não é literal, não é geográfica, não é sobre a origem dos artistas e nem sobre a localização da produção dos trabalhos ou a imagem do sertão?
Júlia Rebouças: Bom, primeiro esse é um conceito que pra mim é muito caro, eu sou sergipana, essa é uma região, um afeto, uma imagem que sempre povoou o meu imaginário. Por outro lado, eu tenho me interessado muito por alguns movimentos ligados à agricultura, ligados à questão da terra, que estão surgindo ali no semi-árido. São mais de três mil, quatro mil organizações que se organizam no semi-árido pautadas pela ideia de uma convivência com a natureza, uma convivência com o semi-árido. Eu vinha me interessando muito por todas essas associações e, sobretudo, por essa tecnologia ultra sofisticada que estabelece uma outra relação com um lugar que a gente sempre tratou como um lugar inóspito, e eles estão alí não só convivendo, como estão criando soluções muito inteligentes. A palavra Sertão é muito importante pra cultura brasileira, por diversos momentos ela atravessa nossa história. A literatura tenta criar um sertão que é parcial, que não está preso ali, o cinema novo leva o sertão pra um outro lugar… Mesmo Grande Sertão Veredas, enfim, tudo isso vai construindo um imaginário sertão que é tudo isso, mas que não é só isso, está sempre se expandindo, sempre indo pra outro lugar. Tem uma qualidade meio ingovernável do termo, uma qualidade não-hegemônica, de resistência, que eu acho que é muito potente pra gente pensar. Mesmo que um senso comum pense Sertão como o semi-árido, como o nordeste, como caatinga, como o bruto, o arcaico, o termo não se pacifica, ele não aceita esse rótulos, ele resiste, e essa é uma qualidade muito interessante pra pensar a própria produção de arte. Eu fiquei pensando: se não é o semi-árido, se não é a caatinga, se não é uma certa cultura, se é tudo isso e ao mesmo tempo nada disso, então talvez seja esse afeto, sejam essas imagens todas, seja o modo de pensar e o modo de agir. Para esse projeto eu escolhi os valores da experimentação e da resistência, que eu acho que são qualidades fundamentais para arte existir.
JL: Eu acho curioso que o sertão é uma palavra que tem uma tradução muito difícil para outras línguas também.
JR: Sim, é uma palavra de difícil tradução, eu gosto disso porque nesse sentido ela é profundamente brasileira ou da língua portuguesa, outro aspecto que gosto é que é uma palavra de etimologia desconhecida, a gente não sabe de onde veio. Ela vem pro Brasil nas caravelas mas a gente não sabe como ela se constitui, qual origem exatamente e ainda que ela tenha vindo trazida pelo colonizador, ela não é uma palavra associada ao projeto colonial, ela é uma palavra ao contrário, da resistência ao projeto colonial.
JL: Mas é um risco ao mesmo tempo, chamar uma exposição com uma palavra que carrega tantas acepções e é tão literária.
JR: Eu acho que tem um risco, óbvio, mas um projeto como esse é pra isso, longe de mim ficar num lugar de conforto, não é p momento pra isso. Acho que o panorama tem essa tradição de ser uma exposição que corre riscos, que traz questões que em outros contextos não conseguiríamos trazer. Nenhum brasileiro lê a palavra sertão e fica indiferente. Eu acho que essa é uma qualidade muito poderosa para começar um projeto, ainda que nesse projeto você vá negar ou ampliar ou desconstruir o afeto com o qual você chegou até aqui. O público pode chegar aqui e pode dizer: “Ué, isso é sertão?” Ou: “De fato isso é sertão”. Ou: “Não, isso não é sertão”. Eu acho que todas essas formas de mobilização são interessantes pra você desafiar o senso comum, e a arte contemporânea faz muito isso, traz imagens novas, ela dá nome a coisas que a gente só sente mas não sabe ainda nomear.
JL: Dentro da sua pesquisa, a partir dessa imagem múltipla de sertão, quando você começou a pesquisar os nomes, os projetos, os coletivos? Você já tinha a intenção de trazer coisas não necessariamente inseridas no sistema da arte?
JR: Uma característica dessa produção sertão, dessa arte sertão, é que ela está muito pouco preocupada com os rótulos, com as inserções ou com os mecanismos de legitimação. Ao contrário, ela vai criar suas próprias formas de se relacionar, vai criar outros pactos, outras relações, vai se nomear de outras formas. Tudo que está nessa exposição está no campo da arte porque eu acho que as coisas do mundo pertencem à arte, e a arte pertence às coisas do mundo. É da vocação dessa produção sertão a dificuldade de nomeá-la, esse deslizar da linguagem é uma outra forma de reinventar mesmo a história.
JL: Uma característica da sua exposição é a presença de um número considerável de mulheres e também de artistas trans.
JR: Eu acho que pra tratar de uma arte que fala de experimentação e resistência a gente tem que ir atrás das histórias e dos corpos que estão experimentando e estão resistindo, e aí são corpos femininos, negros, trans, travestis, não-binários, são pessoas que não estão necessariamente nos lugares de poder, que não estão sob os holofotes. Podem estar também, mas muitos deles não estão. Óbvio que é um recorte muito limitado, uma exposição só com 29 artistas e coletivos, considerando o Brasil. E é um panorama, com todas suas limitações, não uma Bienal. Eu já sinto uma pequena multidãozinha vibrando aqui, mas obviamente é muito limitado, e toda curadoria é sempre muito limitada. Eu acho que não tinha como ser diferente. E tem um outro aspecto que muitos desses trabalhos representam coletivos, eles representam conjunto de pessoas, ou potências de assuntos. O trabalho da Vulcânica, ela traz com ela o arquivo Desaquenda, e só alí tem doze entrevistas de outras doze artistas trans, travestis, não-binárias… Ela não vem sozinha, ela vem com uma comunidade inteira que fala sobre isso, que fala sobre a invisibilidade institucional dessa produção desses corpos dissidentes, dessas existências. E não é à toa que ela está na vitrine do Museu.
JL: Falando sobre a expografia da mostra, como foi o desenvolvimento do projeto com o Estúdio Risco?
JR: Isso é uma coisa muito importante nessa exposição porque eu não queria que fosse uma ocupação de arquitetura museográfica, que trouxesse o vocabulário urbano, como um lugar de poder. Se a gente pensar na cidade, ocupação é poder. Como é que a gente ocupa um espaço expositivo sem replicar essa lógica de que no centro está o mais importante, da periferia distante? Como a gente muda esse jogo das escalas e da ocupação? Eu queria que fosse uma exposição que todos os trabalhos estivessem em contexto sempre, que você nunca visse uma coisa isolada do mundo, da sua vizinhança. A Marta Bogea fez o projeto de painéis com rodinhas que podem ser manipulados, e se refaz a expografia cada vez que o espaço do MAM vai ser ocupado. Eu tinha como ponto de partida usar os materiais já existentes, mas como é que a gente faz isso sem fazer uma parede de três metros isolada? O Estúdio Risco propôs a idéia maravilhosa de tombar e empilhar os painéis. A gente foi criando essa topografia. É uma escala do corpo, não é uma escala da parede, não é uma escala do prédio, do monumento, ou da cidade monumental. Tudo vem de baixo, toda sinalização vem de baixo, a arquitetura vem de baixo, nada vem de cima, só os trabalhos.
JL: Você comissionou muitos trabalhos?
JR: Muitos, muitos. A maior parte das obras. Outros trabalhos a gente mudou o jeito de mostrar, elaboramos junto com os artistas, o que não foi comissionado tem uma maneira de apresentar que é específica da exposição.
JL: As relações também são poéticas nesse sentido, as vizinhanças não são de reforçar ou a mesma técnica, ou o mesmo ponto de partida, né?
JR: Eu acho que os trabalhos vão crescendo um pouco uns com os outros. Eu fiquei pensando em como ocupar os cubos de outra forma que a gente não ocupa a parede do museu. Tem uma pintura, coloca ela sangrando, sabe? Ou um trabalho que escapa, ou um trabalho que vaza. Um pouco como uma planta ocupa um pedra, que brota do cimento mesmo. Nas paredes brancas eu fui mais conservadora, pus um recuo, um espaço, um respiro da pra ver na forma de montar. Já nos cubos a gente vazava, tem coisa caindo de cima. Eu fui estimulando, conversando sobre isso com os artistas, “vamos ser um pouco irreverentes a essa arquitetura, essas pedras, essa topografia, vamos ocupar, habitar elas com uma forma que não seja tão respeitosa”.