A nova exposição do Instituto Tomie Ohtake, dedicada à Coleção Vilma Eid, marca a terceira edição do programa INSTITUTO TOMIE OTAKE VISITA e traz ao público um acervo que, até então, habitava o âmbito doméstico da galerista e colecionadora. Com a proposta de apresentar coleções privadas de relevância histórica e artística, o Instituto reúne aqui um conjunto heterogêneo de obras que transita por produções populares, modernas e contemporâneas – lançando um olhar singular sobre a arte brasileira e rompendo com limites tradicionais que costumam segregar ou hierarquizar essas diferentes linguagens.
Há mais de quarenta anos, Vilma Eid vem reunindo, com intuição e sensibilidade, obras de artistas que ocupam lugares diversos no circuito das artes: das linguagens populares e autodidatas aos cânones modernos e contemporâneos, a coleção lança luz para uma crença fundamental na potência de toda forma de expressão artística. “Arte é arte. Não importa a classificação”, diz a colecionadora ao resumir o modo como sempre dispôs, em sua própria casa, pinturas, esculturas e objetos que saltam entre estilos, épocas e técnicas. Essa convivência cria diálogos inesperados que provocam e ampliam o olhar do visitante, propondo perceber afinidades formais e poéticas capazes de unir artistas de contextos distintos.
Parte do encanto da coleção de Vilma Eid é fruto direto das andanças que ela fazia Brasil afora. Enquanto muitos colecionadores se limitam a frequentar ateliês urbanos ou grandes feiras de arte, Vilma pegava a estrada – ou mesmo o avião – para enveredar por regiões onde, até então, o circuito de arte oficial raramente chegava.
Uma dessas viagens que ela costuma contar com um brilho no olhar foi ao Vale do Catimbau (PE), onde conheceu Zé Bezerra. Estava lá por outros compromissos, mas aproveitou para visitar o ateliê do artista, que ficava bem no meio do sertão. Assim que pisou na casa de pau a pique, repleta de esculturas que pareciam brotar da terra, ficou emocionada. Ele recolhia galhos e troncos caídos e transformava cada pedaço de madeira em uma obra única. Só que não é só o resultado final que importa: é o jeito como ele explica que “sonha” com as esculturas antes de criá-las, como se a matéria-prima estivesse ali só esperando que ele a despertasse. Esse encontro – e tantos outros semelhantes – fez Vilma perceber que existiam, pelo país, artistas excepcionais fora do radar tradicional.
Outra travessia marcante foram as expedições ao Vale do Jequitinhonha (MG), onde ela se aproximou de nomes como Noemisa Batista, Dona Izabel e Ulisses Mendes. Imagine o contraste de sair de São Paulo e chegar a esses lugarejos, muitas vezes sem energia elétrica regular, em que os fornos de barro das ceramistas convivem com as paredes pintadas por elas mesmas. É uma imersão completa: quando você vê as esculturas de barro secando ao sol, entende o quanto a vida e a arte se misturam na rotina daquelas pessoas. Vilma, romântica que é, ficou surpresa ao ouvir de uma viúva que guardava as esculturas do falecido marido na casa porque cobrava uma taxa dos visitantes que vinham fotografar. Ou seja, longe de ser puro idealismo, havia ali uma questão prática: era assim que a família ainda garantia alguma renda.
Essas histórias moldaram a visão de mundo da colecionadora. Na década de 1990, ela viajou intensamente ao Norte e Nordeste também por conta de uma gravadora de música de que era sócia. Cada parada era uma oportunidade de conversar com artesãos, pintores e escultores locais. Assim conheceu Nino, Manoel Graciano, as irmãs Cândido e tantos outros. Uma viagem que começava com compromisso profissional terminava quase sempre na casa ou no ateliê de alguém que criava arte longe de qualquer holofote.
E tem mais, Vilma não era do tipo que simplesmente comprava a peça e ia embora. Pelo contrário, mantinha contato, às vezes voltava a visitar, convidava o artista para expor em São Paulo e fazia questão de contar sua história. Dessa forma, ajudava não só a comercializar a obra, mas a inserir aquele criador em um diálogo maior, garantindo que as vozes antes relegadas a um canto do mercado passassem a ser ouvidas também pela crítica, por museus e por colecionadores mais tradicionais.
É por isso que, hoje, quando a gente olha para as centenas de obras que compõem o acervo dela, não vê só objetos estáticos: cada peça carrega uma narrativa de estrada, de troca, de descoberta. Não existe nada de casual em reunir essas esculturas de madeira, cerâmicas, pinturas modernistas e instalações contemporâneas no mesmo espaço. Cada viagem que Vilma fez ajudou a quebrar algum preconceito, seja no sentido pessoal de quem coleciona, seja no coletivo, de quem achava que a arte produzida fora dos grandes centros não tinha tanto valor. Esse foi, sem dúvida, o maior ganho das aventuras de Vilma Eid: expandir a ideia do que é arte brasileira e, de quebra, aproximar pessoas que, talvez, nunca se encontrariam fora desse contexto.
A mostra Em cada canto, com curadoria de Ana Roman e Catalina Bergues, reflete esse espírito ao reunir mais de 300 obras. O desafio curatorial foi justamente manter o clima íntimo e acolhedor que marca a forma como Vilma dispõe as obras em sua residência, sem perder de vista a clareza expositiva e as potenciais leituras que se abrem ao público. O resultado é um percurso que propõe “vizinhanças” e encontros inusitados: figuras populares cotejadas a composições modernas e obras contemporâneas que dialogam com a herança da arte popular brasileira.
Sob o mesmo teto, bustos e esculturas populares travam um diálogo com pinturas geométricas e instalações conceituais. E o resultado não poderia ser mais instigante. Imagine, por exemplo, as “bugres” talhadas em madeira por Conceição dos Bugres, figuras que carregam toda uma carga de mistério e ancestralidade, lado a lado de objetos poéticos de Tunga, repletos de referências quase alquímicas. Em outro canto do espaço, você encontra o trabalho de Zé Bezerra, que transforma galhos caídos em esculturas imponentes e cheias de vida, contrastando com as formas rigorosas e as cores sólidas das pinturas de Ruben Valentim, marcadas por símbolos das religiões de matriz africana.
Também revemos Eleonore Koch, cuja combinação de cores e cenas minimalistas flerta com a tranquilidade, ao mesmo tempo que Lorenzato traz memórias de infância e paisagens brasileiras em pinceladas quase oníricas. José Antonio da Silva com seus “boizinhos” e aquele humor caipira, registrando cenas tão familiares que você quase sente o cheiro de mato.
O compromisso de Vilma Eid com o reconhecimento desses artistas – muitas vezes marginalizados ou reduzidos a categorias como “primitivos” ou “ingênuos” – reforça a importância de rever os rótulos existentes no campo da arte. Desde os anos 1980, quando iniciou sua trajetória como galerista, ela tem contribuído para a legitimação de produções que outrora ficavam restritas a colecionadores específicos ou a nichos distantes do circuito principal. A Galeria Estação, fundada por Vilma junto de seu filho, tornou-se um espaço fundamental para apresentar nomes que desafiavam as convenções acadêmicas e para promover exposições que reafirmam a complexidade e a diversidade da criação brasileira.
Nesse sentido, a reunião das obras de artistas como Agostinho Batista de Freitas, Conceição dos Bugres, Mirian Inêz da Silva, Iole de Freitas, Ernesto Neto, Ranchinho, Erika Verzutti, entre tantos outros, enfatiza como as fronteiras entre o “popular” e o “erudito” podem ser, na verdade, fluídas e permeáveis. Mais do que levantar bandeiras fixas de classificação, Em cada canto nos convida a pensar sobre as formas de circulação, recepção e valorização dessas obras, bem como a revisitar a história da arte brasileira sob prismas menos eurocêntricos e mais atentos às narrativas locais.
Serviço:
“Instituto Tomie Ohtake visita Coleção Vilma Eid – Em cada canto”
Local: Instituto Tomie Ohtake
Período expositivo: 14 de março até 25 de maio de 2025
Entrada Gratuita