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Instituto Francisco Brennand expõe artistas do Norte e Nordeste

A mostra “Invenção dos reinos” investiga a natureza, história e cosmologia da região da Várzea, em Recife, Pernambuco

por Beta Germano

Rayana Rayo

Cada lugar, segundo o geógrafo Milton Santos, é “um momento do imenso desenvolvimento do mundo”. No dia 11 de novembro de 1971, Francisco Brennand começou a construir sua própria cidadela, um pedacinho do mundo repleto de pássaros, peixes, serpentes, sereias e ovos. O fantástico mundo de Brennand tomou forma, nos últimos 52 anos, na região da Várzea, em Recife,  terra de resistência e encantamento, onde já viveram povos originários Tabajaras e membros do Quilombo do Catucá. 

Neste lugar de potência arrebatadora, a Oficina Francisco Brennand estava tomada, até semana passada, apenas por obras do artista moderno. No dia 11 de novembro de 2023, entre ritos e festas, começou uma fase nova com a abertura da coletiva “Invenção dos Reinos”, curada por Ariana Nuala, Marcelo Campos e Henrique Falcão, com obras de 30 artistas – do Norte e Nordeste e majoritariamente negros ou indígenas – que dialogam com o imaginário de Brennand. 

Francisco Brennand

A ideia da criação de “reinos”, em diálogo com elementos deste universo tão singular construído por Brennand, está necessariamente ligada às conexões com a natureza e com as cosmologias presentes no território ocupado. Para elaborar a mostra, a curadoria atravessou, então, dois caminhos: era preciso pensar sobre a região da Várzea e sobre os elementos que aparecem em suas obras –  que, muitas vezes, dialogam com a história e o cotidiano da região.  Mas também partem de uma pesquisa e curiosidade constante de Brennad pelo mundo e sua criação.  

Várzea: resistência e encantamento 

O primeiro passo foi  entender a necessidade de escuta do lugar onde foi construída a Oficina Francisco Brennand – um terreno de profunda densidade, tomado pela Mata Atlântica, que é lar de diversos seres e saberes. A mata, que se extende por uma área que perpassa, hoje, as cidades de Recife, Camaragibe e São Lourenço da Mata, foi morada dos povos originários Tabajaras e, posteriormente, no século 19, tornou-se lugar de refúgio abrigando um pedaço da extensão do Quilombo do Catucá – que começava em Recife e chegava até Alhandra, na Paraíba. 

“Muito antes da criação se tornar característica de um ou outro artista no Brasil, as sociedades resultantes dos saberes e conhecimentos dos povos originários e afrodescendentes já imaginavam, já “inventavam” lugares, moradas, universos”,  pontuam Ariana e Marcelo no texto curatorial. 

A Várzea é, portanto, um território muito antigo que foi morada de outros povos cosmologias presentes ma região até hoje. “É importante não colocar indígenas e remanescentes quilombolas no passado. Eles estão aqui. Então, esse lugar foi um território de resistência, de luta e também de encantamento”, ressalta Henrique. Por isso, os curadores convidaram mestres e artistas vizinhos à Oficina para compartilharem narrativas para desenhar a exposição. 

“Muitas pessoas que trabalham incansavelmente para salvaguardar as histórias de seus povos, são esses mestres e mestras da cultura, lideranças comunitárias, sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matrizes africanas e indígenas, que estão presentes, hoje,  em atividades artísticas e educativas da Oficina Brennand. Então, é importante que essas vozes ecoem na primeira exposição  que se abre para outros artistas que não Francisco Brennand”ressalta Ariana Nuala. 

Entre as obras é possível ver, por exemplo, dois documentários com essas autoridades – Vovó Cici, referência na cultura  afro-religiosa; e Dona Zeza, sacerdotisa Jurema. Em ambos os casos é possível refletir sobre a importância da oralidade nas tradições africanas e originárias.  “É a oralidade é que vai demarcar narrativas. Aqui, a palavra por si já é oficializada, por ser dita. E não há necessidade do arquivo, como documento colonial, para que algo exista”, explica Henrique. 

Clara Moreira

Cosmologia, natureza  e território – o encontro das tradições indígenas e africanas 

Ao “inventar reinos” esses povos faziam muito mais, pois o “imaginar” se justificava em conexões ancestrais, no contato com seres e lugares divinizados, onde fauna, flora e espiritualidade residem em plena comunhão.Ou seja: são reinos que norteiam determinados cultos, e também influenciam na relação com os bichos, as plantas, as águas e todos os demais seres. As ideias de natureza, cosmologia e território – três eixos curatoriais do Instituto Francisco Brennand -, portanto, andam de mãos dadas. 

“É importante pensar sobre essas separações que são puramente ocidentais. Até que ponto estamos falando de  natureza? Até que ponto é território? E até que ponto é cosmologia de matriz indígena africana? Para essas comunidades não vai existir uma distinção dicotômica. Falar de  pássaro, por exemplo, pode ser a tradução para uma divindade, dentro de uma cosmologia. Da mesma forma, a árvore poderia ser lida, de maneira rasa, como natureza. Mas a Jurema não é só uma árvore. Ela é a própria divindade da Jurema.”, pontua Henrique. “Enão tem como pensar a natureza e cosmologia sem pensar ou assentar na terra. Não é possível dividir, então, ‘território, natureza e cosmologia’. Assim como não é possível dividir ‘representação, presença e encantamento'”, conclui.   

Mestre Gerard

Jurema 

O que hoje muitos conhecem com o a “Mata dos Brennand”, foi chamada por Francisco Brennand de “Mata do Segredo” e, por outros pernambucanos, de “Mata da Várzea”, por sua localidade. Os moradores mais antigos a chamam de  “Mata do Catimbó”, revelando a relação do lugar com praticantes de religiosidade de terreiro com ritos na mata – catimbó, nas linguas tupi-guaranis, significa respectivamente “fumaça de mato” e “vapor de erva”. O “Catimbó”

é, de acordo com muitos pesquisadores, de uma das mais antigas religiões brasileiras, unindo narrativas, crenças e ritos dos povos originários da floresta e saberes remanescentes dos povos afrodiaspóricos. Sua cosmologia gira em torno de uma árvore sagrada muito comum no Nordeste: a Jurema é também uma entidade e dela são retirada a raiz, a casca, as folhas e as sementes, utilizadas em banhos de limpeza, infusões, bebidas para fins ritualísticos, e fumo  para criar a fumaça encantada do mato de onde nascem cidades, reinos. Por isso, os devotos iniciados nos rituais do culto são chamados de “Juremeiros”.

Os africanos contribuíram com o seu conhecimento sobre o culto dos mortos Egum e das divindades da natureza os orixás, voduns e inquices. Os índios, estes contribuíram com o conhecimento de invocações dos espíritos de antigos pajés e dos trabalhos realizados com os encantados das matas e dos rios. “Malunguinhoera o título dado às lideranças doCatucá.  Conforme essas pessoas eram assassinadas, elas passavam a ser invocadas, cultuadas, encantadas, nos terreiros de Catimbó, como divindades que se manifestam na Jurema”, explica Henrique. 

“O Orum, nas religiões de matriz africana,  é o outro lugar onde nossos ancestrais vivem. A Jurema tem a ideia da fumaça que constrói as cidades ( ou reinos) onde residem os Encantado. Por isso, a construção dos reinos, aqui,  tem um vínculo forte com o cachimbo”, explica Marcelo ao lado do magnifico cachimbo feito por Fakhô Fulni-ô.

Fykyá Pankararu

Um home moderno – Ovos , serpentes , pássaros e peixes

“Percebemos, aqui, um criador que vai nos conferir um mundo de muita fantasia,  uma construção fantástica mesmo. E ele não está sozinho. Isso é uma tradição no século 20, sobretudo na América Latina. E a gente já chamou isso de alguns nomes:. Realismo mágico ou realismo fantástico, por exemplo”, pontua Marcelo Campos. “Francisco Brennand era, inegavelmente, um homem moderno.  E isso significa que ele buscou, como todos os modernos, uma pesquisa sobre as culturas populares, tinha um interesse pela terra e o orgulho de estar no Brasil produzindo aquilo que está, entre aspas, configurado no imaginário popular”, conclui. 

É importante compreender, portanto, que as famosas imagens de suas cerâmicas e pinturas não foram apenas invenções da cabeça do artista: elementos de seu repertório já estavam presentes nas tradições indígenas e africanas e nasceram dessa pesquisa despertada por uma curiosidade ampla, mas também cheia de contradições. 

Numa viagem à Salvador, por exemplo,  Brennand se encantou pela forma do arco e flecha, mesmo sem saber, inicialmente, que este era símbolo do Orixá Oxossi, guardião das matas. O Ofá – aqui, compreendido também como a preaca do Caboclinho – foi, então, geometrizado e transformado no símbolo de sua instituição.

Nas tradições afro-indígenas, peixes, pássaros e serpentes são seres encantados, aparecendo não só no imaginário de Brennand, mas da maioria nas obras dos outros artistas da mostra – que criam a partir deste mesmo lugar e, portanto, do mesmo repertório. São obras que nascem da escuta e da comunhão com matas, as várzeas, as florestas, os rios. AORUAURA e Fykyá Pankararu sugerem, por exemplo, uma espécie transmutação com a serpente e a floresta, negando a humanidade – esse homem moderno.

Símbolo da origem do mundo e dos homens, o ovo é um tema recorrente na obra de Brennad e aparece novamente nas imagens criadas por Rafaela Kenned que atualiza a discussão incluindo o corpo trans na conversa. O mesmo acontece nas pinturas de Clara Moreira –  a figura feminina (ou não) ganha morada no ovo que ela própria pode gestar. Caminhadas e retornos para responder questões essenciais e existenciais da humanidade: de onde viemos? quem somos? como lidamos com o mundo? e para onde vamos?

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