Olá, bem-vindos ao segundo episódio da segunda temporada do podcast do ARTEQUEACONTECE. Eu sou Julia Lima, curadora, pesquisadora e apresentadora deste episódio. Hoje vamos falar sobre a Bienal de São Paulo, especificamente sua 36ª edição. Nem todo mundo sabe, mas a Bienal de São Paulo é a segunda bienal criada no mundo, depois da Bienal de Veneza, fundada em 1895. Vocês já ouviram falar bastante disso no nosso episódio passado.
Para resumir esse pedaço mais recente da história: até a década de 1950, São Paulo não tinha grandes museus nem escolas de arte, como o Rio de Janeiro, por exemplo. Em 1947, Assis Chateaubriand fundou o MASP, o Museu de Arte de São Paulo. No ano seguinte, Ciccillo Matarazzo fundou o Museu de Arte Moderna (MAM), muito influenciado pelo MoMA de Nova York.
Depois da abertura do MAM, muita gente provocava Ciccillo perguntando por que não fazer também no Brasil uma exposição similar à Bienal de Veneza, para apresentar uma amostra da produção artística internacional, que nem sempre chegava por aqui. A ideia era que a Bienal de São Paulo fosse uma alternativa à edição veneziana, trazendo artistas ou países que não necessariamente participavam da bienal italiana.
O Brasil participou da Bienal de Veneza pela primeira vez em 1950. E assim, em 1951, se daria a primeira Bienal de São Paulo. Essa história começa com Ciccillo e com o MAM; a Bienal acaba sendo uma extensão do museu. A organização dessa primeira edição demandou muito trabalho de colaboradores de Ciccillo. Sua esposa, Yolanda Penteado, e a artista Maria Martins foram fundamentais para fazer a exposição acontecer. Yolanda e Maria viajaram por vários países — Suíça, França, Itália, Holanda — convencendo artistas e instituições a participar, emprestando obras e organizando delegações.
Essa empreitada resultou em mais de 1.800 trabalhos de 25 nacionalidades diferentes, exibidos a partir de outubro de 1951. O projeto seguia o modelo veneziano de separação por países. No caso dos Estados Unidos, o MoMA organizou a participação, trazendo 58 artistas escolhidos pelos principais museus e galerias do país. Enquanto no exterior todos corriam para assegurar delegações, no Brasil Ciccillo lutava para encontrar um espaço. O local escolhido foi o Trianon, na Avenida Paulista, onde hoje está o MASP. Na época não havia nada construído ali, então foi erguido um pavilhão provisório.
O diretor da mostra inaugural, Lourival Gomes Machado, também seguindo os preceitos venezianos, estabeleceu dois júris: um liderado por ele para escolher os artistas brasileiros que participariam, e outro para premiar as melhores obras e delegações. O crítico Mário Pedrosa, em 1951, elogiou o brilho de várias delegações e também a participação brasileira, que, segundo ele, trouxe o melhor da arte nacional.
Desde então, muitas bienais foram realizadas, com histórias incríveis — como a segunda edição, que contou com a icônica Guernica, de Pablo Picasso. Mas isso é assunto para outros episódios.
A 36ª Bienal de São Paulo
Nosso foco agora é a edição que abriu em setembro de 2025, em São Paulo. Intitulada “Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática”, esta Bienal é comandada pelo curador-geral Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, com a equipe formada por Alya Sebti, Anna Roberta Goetz e Thiago de Paula Souza, além da cocuradora at large Keyna Eleison e da consultora de comunicação Henriette Gallus.
Bonaventure, hoje um curador muito conhecido, nasceu em 1977 em Yaoundé, nos Camarões, e mudou-se para Berlim em torno dos 20 anos, para estudar na Technical University de Berlim. Depois, fez doutorado em Biotecnologia e pós-doutorado em Biofísica na França. De volta a Berlim, em 2009 fundou o Savvy Contemporary, um laboratório experimental de formas e ideias, propondo exposições com performance, publicações e projetos sonoros.
Entre muitas outras mostras, Bonaventure integrou a equipe da Documenta 14, da Bienal de Dakar e da Bienal de Fotografia Africana no Mali. Ele também é escritor prolífico, colaborador de revistas e professor na Academia de Arte de Berlim, além de curador da Haus der Kulturen der Welt, também em Berlim. Sobre sua indicação para a Bienal de São Paulo, Bonaventure disse:
“A Bienal de São Paulo me parece um sismógrafo que não apenas registra os diferentes tremores que o mundo está experimentando, mas que também nos oferece possibilidades de moldar um futuro mais justo e humanitário para todos os seres animados e inanimados do planeta.”
A equipe de curadoria
- Keyna Eleison – curadora at large, carioca, já coordenou equipamentos públicos da Secretaria Municipal de Cultura do Rio, foi professora da EAV Parque Lage, fundadora da coletiva Nacional Trovoa e diretora artística do Museu de Arte do Rio. Recentemente, foi curadora da 1ª Bienal das Amazônias.
- Alya Sebti – nascida em Casablanca, diretora da Ifa-Galerie, em Berlim; curadora da Manifesta 2020 em Marselha e convidada na Bienal de Dakar 2018.
- Anna Roberta Goetz – trabalhou no Marta Herford Museum e no MMK em Frankfurt; cocuradora do pavilhão da Alemanha na Bienal de Veneza 2013.
- Thiago de Paula Souza – paulistano, cocurador do 38º Panorama da Arte Brasileira no MAM-SP em 2024, membro da equipe da 10ª Bienal de Berlim em 2018 e da 3ª edição do Frestas – Trienal de Artes (SESC Sorocaba).
- Henriette Gallus – consultora de comunicação; foi diretora de comunicações da Documenta 14 e vice-diretora da Haus der Kulturen der Welt.
Conceito curatorial
Durante a preparação, a equipe realizou quatro encontros internacionais chamados “invocações”, no Japão, Marrocos, Zanzibar e Guadalupe. Mais do que eventos preparatórios, funcionaram como dispositivos para disparar e construir o conceito curatorial. O título da mostra vem de um poema de Conceição Evaristo:
“Quando eu morder a palavra, por favor, não me apressem. Quero mascar, rasgar entre os dentes a pele, os ossos, o tutano do verbo, para assim versejar o âmago das coisas. (…) Nem todo viandante anda estradas. Há mundos submersos que só o silêncio da poesia penetra.”
Os curadores explicam que “viandante” é uma palavra antiga, difícil de traduzir; em inglês, optaram por “traveler”, embora não abarque totalmente o sentido. A segunda parte do título — “Da humanidade como prática” — propõe pensar a humanidade como verbo, ação, exercício. Para organizar a exposição, a metáfora escolhida foi a do estuário, lugar de encontro de diferentes águas, que sugere coexistência, convivência e tensão.
Espografia e montagem
A 36ª Bienal reúne 125 participações individuais e coletivas, distribuídas nos três andares do pavilhão do Ibirapuera. O projeto expográfico é da arquiteta Gisele de Paula em parceria com Thiago Guimarães, com o mínimo possível de paredes, aproveitando a luz natural do espaço. Salas fechadas foram construídas apenas para vídeos, obras sonoras ou interativas, próximas às janelas.
Esses espaços são circundados por cortinas ondulantes em verde e azul, remetendo ao rio, eliminando ângulos e retas. As cores também estão nos suportes e painéis, pintados em amarelo, laranja, vermelho e rosa, fugindo do cubo branco. Grandes instalações ocupam áreas centrais, com obras que atravessam pavimentos, como as de Anna Hailander e Otobong Nkanga. Há também destaque para as pinturas de Frank Bowling, dos anos 1970 e 1980, além de trabalhos inéditos feitos para a mostra.
Na coletiva de imprensa, Bonaventure abriu sua fala recitando de memória um poema de Rumi, sobre a condição humana como pousada, metáfora de acolhimento e impermanência. Ele falou ainda sobre guerra, fome, genocídio e miséria como parte de um projeto de desumanização, e sobre como a arte pode oferecer sensibilidades mesmo diante de um futuro incerto.
Estrutura da exposição
A Bienal está dividida em seis capítulos:
- Frequências de chegadas e pertencimentos – conecta o visitante ao ambiente natural, com destaque para a instalação de Precious Okoyomon.
- Gramáticas de insurgências – pensa formas de resistência; inclui a instalação espelhada de Song Dong e esculturas verticais de Anna Hailander.
- Ritmos espaciais e narrações – encontros entre humanos, animais, natureza e arquitetura.
- Fluxos de cuidado e cosmologias plurais – cuidado como nutrição e sonho, mitologias, corpo e invenção.
- Cadências da transformação – mudanças que definem a condição humana, tanto as provocadas quanto as sofridas.
- A intratável beleza do mundo – encerra a mostra com a ideia da beleza como política e resistência, encontrada no ordinário, no estranho e na ruína.
Entrevista com Juliana dos Santos
No próximo bloco, Mariane Bellini, curadora e pesquisadora, entrevista a artista Juliana dos Santos, participante da 36ª Bienal.
Juliana é paulistana, nascida em 1987. Artista visual, mestre em Arte e Educação, doutoranda no Instituto de Artes da UNESP. Trabalha com instalação, vídeo, pintura, performance, fotografia e multimídia. Ela relata como a universidade pública foi fundamental em sua formação, permitindo experimentar diferentes linguagens. Lembra de um exercício dado por Sérgio Romagnolo: “faça uma pintura sem tinta”, que a irritou na época, mas depois foi decisivo para ampliar sua concepção de arte.
Sua pesquisa atual investiga a cor azul, a partir da flor Clitoria, como experiência sensível e espiritual. Relata uma vivência em meditação budista em que sentiu uma luz azul interna, experiência transformadora que marcou sua prática. Juliana explica como, após anos produzindo obras voltadas para questões de racismo e gênero, percebeu a necessidade de buscar um espaço de respiro, prazer e imaginação. O azul tornou-se esse lugar:
“Eu queria muito que crianças negras entrassem na minha exposição e vissem beleza, imaginação, e não apenas violência e racismo.”
Ela também fala sobre residências internacionais, como em Viena, e sobre referências de artistas como Yves Klein e tradições africanas ligadas ao índigo. O azul, em sua prática, é uma busca por imaginar outras possibilidades de existência diante de um mundo racializado.
Encerramento
A produção deste episódio é do ARTEQUEACONTECE.
Artista entrevistada: Juliana dos Santos.
Pesquisa, roteiro e apresentação: Júlia Lima.
Edição e sonorização: Bruno Palazzo e Marcelo Zoppe.
Até o próximo episódio!