Um futuro distópico em que plástico é a nova comida e a cirurgia é o novo sexo ( o ser humano quase não sente dor e cortes passam a ser excitantes). A tecnologia está mais para organismos vivos alienígenas do que para máquinas impessoais. Neste novo contexto, a espécie humana começa a vivenciar uma “síndrome de evolução acelerada” e passa por processos de metamorfose e mudança em seu DNA.
Crimes do Futuro, novo filme escrito e dirigido por David Cronenberg que estreou no Festival de Cannes de 2022 sob vaias e aplausos, chegou aos cinemas nacionais e no MUBI revelando um futuro que mais parece apoiado num passado que previa nosso presente do que de um futuro distante. Explicamos: Saul Tenser (Viggo Mortensen) é um artista reconhecido pelas performances feitas com sua companheira Caprice (Léa Seydoux). Ele é um dos seres humanos que está “evoluindo” e costuma criar órgãos dentro de si (chamados de inner beauty, como se fosse uma obra de arte mesmo) que são retirados por Caprice por meio de uma espécie de cirurgia-espetáculo.
No filme, os corpos humanos mudaram tanto que algumas pessoas mal conseguem sentir dor. Por causa disso, facas são empunhadas nos becos da cidade por casais em busca de prazer, e acontecimentos quase secretos, como Saul e Caprice, contam com seguidores leais. A ideia, aqui, é repensar conceitos como de dor e prazer e, para isso, o cineasta se apoia na história da performance ou body art. Afinal, não parece haver referência mais radical, até hoje, que a turma que repensava corpo e arte anos 1960 e 1970.
Baseado em fatos reais, ou na história da arte
Crimes do futuro é classificado, pelos cinéfilos, como body horror (ou biological horror), um subgênero do cinema de terror que apresenta violações do corpo humano psicologicamente perturbadoras. Embora tenha sido aplicado originalmente a um subgênero emergente do cinema de terror norte-americano, o conceito de body horror tem suas raízes nos primórdios da literatura gótica e se expandiu para incluir outras mídias.
A terminologia body-horror foi usada pela primeira vez por Phillip Brophy em 1983, no artigo “Horrality: The Textuality of the Contemporary Horror Film”, para descrever o subgênero que nascia focado na “destruição corporal” e no “medo do próprio corpo”. O próprio Cronenberg é considerado um dos principais criadores do body horror ao lançar filmes como Shivers (Calafrios), de 1975; Rabid (Enraivecida na Fúria do Sexo), de 1977; e, The flay (A mosca), de1986.
O gênero da sétima arte, coincidentemente ou não, surgiu no mesmo período em que a performance ocupou as principais galerias, museus e ruas do mundo. Entre tantas ações nas quais o corpo era a principal matéria e tema, nascia uma “tendência” por propostas violentas, destrutivas e repulsivas que muito provavelmente começou com o grupo conhecido como Acionismo Vienense. Ativos entre 1960 e 1971, o grupo composto por nomes como Günter Brus, Otto Mühl, Hermann Nitsch e Rudolf Schwarzkogler, entre outros, promovia ações radicais e sangrentas na capital austríaca com o objetivo de “quebrar tabus” e mostrar insatisfações ligadas ao governo e à sociedade burguesa que ascendia no pós Segunda Guerra Mundial. A ideia era chocar mesmo e as ações eram quase sempre ilegais. Mas é a arte feminista dos anos 1970 que parece exercer a maior influência neste filme: Marina Abramović, Gina Pane, ORLAN e até a brasileira Letícia Parente podem ser citadas como referência.
A principal performance do filme é sugestiva e é claramente inspirada na mais famosa dupla de performers (and lovers!) da história da arte: Marina Abramović e Ulay. Imagine: Uma máquina com bisturis rápidos abre o peito de Tenser e vasculha suas entranhas. Quem comanda as máquinas é sua parceira Caprice que anda pela sala, manuseando um controle mutante macio com luzes piscantes. A plateia parece extasiada enquanto Tenser geme e se contorce, talvez de prazer, talvez de dor, talvez em uma mistura dos dois.
Agora volte quase 50 anos e estacione na vida real: A proposta da famosa Rhythm 0, performance de Abramović que aconteceu em 1974, era que a artista ficasse parada durante 6 horas enquanto o público convidado fizesse o que quisesse com ela, usando um dos 72 objetos dispostos sobre uma mesa. Entre eles, facas, lâminas cortantes, tesouras e uma arma carregada. A ideia era entender o limite do ser humano quando lhe é dado o poder de agir sobre o outro sem a apresentação de uma consequência para seus atos.
No ano seguinte, 1975, Marina apresentaria outra performance icônica, na qual conheceu Ulay: em Lips of Thomas ela cortava uma estrela em sua barriga com uma lâmina. Quando a apresentação terminou, ele cuidou de suas feridas, e a partir daquele momento iniciou-se uma parceria romântica e profissional bastante parecida com a de Saul e Caprice. Difícil saber se foram os astros ou o zeitgeist da época, mas Lips of Thomas aconteceu no mesmo ano em que Cronenberg estreou seu primeiro body-horror, o filme Shivers. E mais: dois anos antes, em 1973, J. G. Ballard escreveu Crash – um romance (já interpretado por Cronenberg em 1996) que narra uma história de fetichismo sexual ligado a acidentes de carro: o protagonistas ficam sexualmente excitados ao encenar e participar de acidentes reais, inspirados nos famosos acidentes de celebridades. No livro, o narrador chama a experiência de “uma nova sexualidade, nascida de uma tecnologia perversa”. Em Crimes do Futuro, Timlin (Kristen Stewart) anuncia “a cirurgia é o novo sexo”.
Outra artista que pode ter inspirado o diretor é a italiana Gina Pane – uma figura radical que se violentou tantas vezes que precisou parar de trabalhar pelo fato das performances terem ficando desgastantes demais. Também em 1974, ela criou a performance Action Psyché, na qual cortou repetidamente as próprias pálpebras e estômago, deixando as incisões abertas para que pingasse sangue. Seu objetivo era “alcançar uma sociedade anestesiada”. Uma sociedade com tanta dor que o desconforto precisasse de muito estímulo para acontecer, uma situação semelhante ao mundo visto em Crimes do Futuro. Se refletirmos sobre a sociedade que construímos hoje, onde estamos tão anestesiados pelo excesso de imagens do mundo digital que pouca coisa nos afeta….o futuro distópico de Cronenberg é agora.
Mas, além do casal protagonista, outros personagens artsy também chamam atenção. Curiosa, Caprice resolve assistir a performance de uma belíssima artista que leva ao extremos o conceito de cirurgia plástica e os ideais de beleza: ela também transforma o procedimento médico em espetáculo e convence uma mulher a cortar o seu rosto. No final da apresentação, Caprice vai cumprimentá-la e é convidada para uma festinha íntima. Na próxima cena, Caprice aparece com a testa repleta de calombos – pressupõe-se que ela se empolgou no after e fez uma cirurgia para ficar, no conceito antigo, mais feia.
Como é construída a ideia de belo na nossa sociedade? Quais são as consequências físicas e psicológicas dos ideais de beleza e qual é o papel do cirurgião plástico nesse contexto? Além de instigar discussões recorrentes no mundo da arte, o episódio traz outro recado: a cirurgia se tornou, no futuro de Cronenberg, uma espécie de arte performática.
Mas a ideia não é exatamente nova. No mundo real, artistas passaram por procedimentos médicos na tentativa de propor novas formas para o corpo humano, questionando os ideais de beleza; as noções de gêneros; e, as normas sexuais.
Assim como a personagem do filme, a artista francesa ORLAN se submeteu a algumas operações com o objetivo de reverter o conceito da cirurgia plástica: o procedimento geralmente é normalmente feito para tornar os corpos “bonitos”, entretanto, ao modificar seu próprio corpo, a artista queria se tornar menos atraente. Em uma delas, ganhou memoráveis protuberâncias curvas na testa bastante similares às de Caprice. Orlan deixou bastante claro que as operações foram atos políticos para reivindicar sua liberdade e de todas as mulheres dos tempos futuros.
Interessado na concorrência, Tenser vai assistir a performance de um outro artista que tem a boca e os olhos costurados. Ouvimos uma voz em off falando que devemos “falar e ver menos para ouvir mais”. Neste momento, a câmera sai do close no rosto do artista para um plano aberto revelando seu corpo que é coberto por orelhas. Mais que um mutante, o artista chamado no filme de Ear Man é mais um artista que aposta na busca de novos e subversivos corpos.
O personagem mais perturbador do filme também não é uma invenção livre do diretor, mas uma referência direta ao artista australiano Stelarc, cujo trabalho principal envolveu implantar uma terceira orelha funcional em seu braço.
Com o objetivo de propor uma reflexão sobre as mudanças radicais que já vivemos na era digital, o artista ressalta que a importância da conectividade supera, hoje, a identidade do corpo. A prótese, afirma o artista, “não é vista como sinal de falta, mas sim como sintoma de excesso.” Conhecido como Ear on Arm, Stelarc levou mais de uma década para produzir esta obra, em parte por causa das dificuldades médicas envolvidas e em parte por causa das restrições burocráticas que proíbem cirurgias desse tipo.
Ao ver a boca e olhos costurados do Ear Man, a plateia brasileira pode lembrar imediatamente de Letícia Parente – artista brasileira pioneira na performance e videoarte que usa o próprio corpo para instigar uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade. Em 1975 (pasmem!) ela criou um de seus trabalhos mais emblemáticos: o filme Marca Registrada mostra a artista bordando, na planta de seu pé, as palavras “Made in Brazil”. Considerando que vivíamos o auge da ditadura militar, é importante notar que Parente estava propondo uma ação duplamente política: de um lado, o corpo subjulgado, dolorido e violentado; do outro, uma sociedade reprimida por quem deveria defendê-la, o próprio Estado.
Outro detalhe que vale notar é o fato dos órgãos retirados de Tenser por Caprice serem tatuados e expostos, depois da operação, como verdadeiras esculturas. Poderia um organismo retirado de um ser humano ser vendido como obra de arte? Seria legítimo (ou ético) usar esse órgão como canvas e a tatuagem como técnica de desenho? Estas questões são pontuadas no filme O homem que vendeu a sua pele, que por sua vez foi inspirado no trabalho do artista Wim Delvoye.
Noção de espetáculo e do que pode ser considerado arte ressoa durante a trama inteira. Entretanto, apesar de serem assuntos que merecem ser discutidos, o filme de Cronenberg parece um tanto gratuito sem grandes aprofundamentos ou elaboração dos personagens. Mas é uma história que choca justamente por tratar de algo possível e que, em certo nível, já está acontecendo.