“Quando a música para, percebemos que o silêncio é muito lindo”, relatou o artista Marco Paulo Rolla sobre a performance Preenchendo o Espaço, na qual ele move o instrumento como um pulmão que respira profundamente. Idealizado em 2016 para a exposição Terra Comunal, idealizada por Marina Abramovic, a obra resume bem as questões que rodeiam a produção de Marco: ele trabalha com múltiplas mídias para propor dualidades que permeiam a vida o ser humano – desejo e morte; prazer e dor; vazio e acúmulo; música e silêncio.
Seu corpo respira, dança, flutua, desequilibra, bate, rebate, come, atrai e repulsa…entra em transe. É matéria e sujeito, elemento essencial para aproximar a subjetividade individual da experiência coletiva. É sintoma e vestígio de uma vida que pulsa, num Abismo contínuo, título de sua primeira individual na galeria Verve, que acaba de abrir o novo espaço no Edifício Louvre, projeto da década de 50 de Artacho Jurado em plena Avenida São Luís, no centro de São Paulo.
Marco soube desde criança que era artista e que queria estudar e confrontar a própria existência do ser humano. Mas, apesar do corpo ter papel um central em seu trabalho, é na complexidade da psique humana que ele dá um salto. “Para representar um ser, parto da energia e depois venho com o corpo”, relatou o artista sobre a belíssima série Dissoluções em Manchas Acidentais, marcada na exposição por Fumaça, de 2018.
Essa energia também diz muito sobre o artista. Dotado de uma sensibilidade vista, hoje, em poucos criativos, Marco tem um trabalho baseado mais na percepção do seu entorno que na racionalidade. E a convivência com Abramovic só o ajudou a ter certeza disso: arte é sobre estar atendo. “As pessoas precisam aprender a estar e, por isso, acho que o fazer artístico tem muito a ver com a meditação. Quando criamos a partir do que acontece à nossa volta, tudo fica mais verdadeiro”, pontua.
E foi a partir da observação da vida cotidiana que nasceram suas mais importantes séries. Para começar, ele entendeu que o desejo é indissociável da pulsão da vida e, consequentemente, da morte. “Sem o desejo nós não levantamos da cama, não vivemos. A morte, portanto, é onde o desejo termina”, explica. E esse desejo pode ser visto e representado de diversas formas – desde o desejo sexual, mais literal, que aponta para questões que até hoje são tabus, até a avalanche de desejos impostas pelo capitalismo que resultam, segundo o artista, nas maiores doenças da nossa sociedade. “O desejo é bom, vital, mas o capitalismo deturpa tudo isso. Redireciona nosso desejo ao vender uma história de conquista que nunca é totalmente alcançada, por isso nunca estamos satisfeitos ou felizes”, explica. Esse interesse o fez estudar propagandas de revistas do pós-guerra e o resultado foi uma série de pinturas dos anos 1990 que ele representa objetos de desejo, como eletrodomésticos e comidas, joias, vestidos e tecidos suntuosos, “em situações de violento desequilíbrio, seja com pessoas gritando e brigando ao redor, seja flutuando ou cobertas de véus pretos e presas em redemoinhos”, como descreve Tadeu Chiarelli em matéria sobre o artista no O Estado de S. Paulo, em 1994.
Entre as pinturas, vale destacar a série dos eletrodomésticos que estará, no segundo semestre, na mostra A Máquina do Mundo, curada por José Augusto Ribeiro, na Pinacoteca. “Primeiro eu comecei a me interessar nesse design como potência, afinal boa parte daquelas tecnologias foram desenvolvidas inicialmente como instrumento de guerra. Mas depois comecei a perceber que aquela propaganda era também uma forma de combate ao feminismo que ganhava força no período. A indústria investiu para levar as mulheres de volta para casa”, explica o artista.
Mas o desejo também aparece ligado à ideia de fetichismo e repulsa nas séries em que Marco usa pelos artificiais, veludo, gliter e estuda as tipologias mais usadas para as tatuagens. Artista e público são engolidos e expelidos pelo desejo, na galeria, em A Meia e A Xícara, ambos trabalhos de 1998, e também em algumas performances. Marco aproxima cotidiano e absurdo em situações em que corpos e objetos parecem estar sempre no limite entre o flutuar e o quebrar, assim como na própria vida, e destaca as regras criadas pela sociedade com uma espécie de aprisionamento. “Sempre vi a estranheza como algo atrativo, talvez por causa da minha própria condição de estranho no ninho como homosexual numa sociedade proibitiva”, afirma o artista que não traz sua sexualidade como bandeira, mas ela permeia todo o trabalho. “Satisfazer os moldes da sociedade é o que nos apodrece e adoece. Felicidade é outra coisa”, completa.
O cotidiano, objetos da casa e cenas banais (muitas vezes entediantes) aparecem com frequência também nas performances como uma forma de propor uma reflexão sobre novas maneiras de viver. Confortável, por exemplo, nasce de uma reflexão sobre propagandas de colchão que exploram a cama como ideia de paraíso. O artista subverte a ideia colocando-se em lugares de desconforto. Já em Cama, Mesa e Escada, apresentado na 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, exibida em vídeo na galeria, ele se coloca como um ser humano objetificado em cima de um colchão de casal, onde mesa, cadeira e uma escada de alumínio se movimentam como uma engrenagem, numa simbiose com seu próprio corpo. “Assim como na vida, o ser humano está atrelado aos objetos, objetificado pela indústria, e, na maioria das vezes, o faz sem consciência. O título também combina com os pré-requisitos materiais de um casamento: o conforto do lar – cama, mesa e banho -, que é substituído pela escada industrial. A escada é um elemento de ascensão, mas por onde também podemos descer.”, alerta o artista. Como bem define Júlia Rebouças no texto crítico da mostra, “No espaço entre a abstração e a figuração, entre o que precisa ser dito, o que cala e o que se imagina, entre resiliência, luto e transformação, a obra de Marco Paulo Rolla insiste na arte e na vida”.
Abismo Contínuo
Data: Até 26 de Julho de 2021
Local: Galeria Verve
Endereço: Avenida São Luis, 192 – Sobreloja 06