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Galeria Jaqueline Martins expõe trabalho de Rafael França

A curadora Veronica Stigger fez uma seleção de textos e obras de outros artistas para dialogar com os vídeos de Rafael França

por Beta Germano
Prelúdio De Uma Morte Anunciada, de Rafael França, 1991
Prelúdio De Uma Morte Anunciada, de Rafael França, 1991

Imagens fragmentadas, espiraladas, dissolvidas, pulverizadas. Tudo oscila e vacila. Tudo é vertigem em Rafael França. A nauseante velocidade dos cortes, sempre dinâmicos, e os movimentos nervosos da câmera geram a mesma angústia de uma morte declarada. A vertigem é a sensação de desequilíbrio e iminência de queda diante do abismo. Não sente vertigem quem não encara de frente o precipício. Parece poético, então, começar pelo fim. A exposição Réquiem e vertigem, curada por Veronica Stigger na Galeria Jaqueline Martins,  que celebra o trabalho do artista, abre com o filme Prelúdio de uma morte anunciada.  Gravado poucos meses antes da morte de Rafael,  vítima de AIDS, o vídeo revela partes dos corpos do artista e seu companheiro, Geraldo Rivello, trocando carícias. Bocas na barba por fazer, abraços ternos, mãos dadas em um ato de cumplicidade. A narrativa se desenvolve ao som de “Addio, del passato”, de La Traviata, na interpretação de Bidu Sayão – música que narra a história de uma cortesã que está à beira da morte e diz adeus relembrando tudo que viveu. 

O Profundo Silencio Das Coisas Mortas, de Rafael França, 1988
O Profundo Silencio Das Coisas Mortas, de Rafael França, 1988
Beautiful People, de David Wojnarowicz, de 1988
Beautiful People, de David Wojnarowicz, de 1988

Na diagonal, não à toa, vemos nomes de outros de homens vítimas da AIDS. Rafael escolhe o primeiro nome de cada um deles, sugerindo intimidade e subjetividade. “Ah, com essa doença toda esperança está morta”, canta Sayão. Trata-se de uma despedida. De um “réquiem vertiginoso”, como sugere a curadora. Mas não é um adeus qualquer, o vírus do HIV foi o responsável por assombrar uma geração inteira, na década de 1980,  e  “essa doença” só trazia uma certeza: entre vertigens, a vida iria se esvair. No final do filme lê-se a frase: “Above all they had no fear of vertigo”. 

Influenciado por artistas como Nam June Paik e Buky Schwartz, Rafael tornou-se um dos pioneiros da videoarte no Brasil desafiando os limites entre ficção e realidade. Usou imagens para ilustrar mais um estado psicológico (geralmente perturbador)  do que narrativas lineares convencionais: uma mulher combate a opressão de seu ambiente doméstico; um homem solitário confronta-se com seu próprio passado traumático e mortalidade; a obsessão e isolamento que levam outro personagem  a um estado de paranóia; um jovem suicida levanta questões sobre o enfrentamento da morte, outro homem revela-se insone e expõe suas inquietações. A única certeza é o vacilo. 

Combat In Vain, de Rafael França, de 1984
Combat In Vain, de Rafael França, de 1984

O fio condutor da mostra é, então, o próprio corpo que persiste diante do colapso, pulsante e consumido; erotizado e torturado; excitado e agoniado. “Os corpos fragmentados giram em frames que se movimentam em espirais, indo e voltando, subindo e descendo, aumentando e diminuindo. Ao contrário do que ocorre na maior parte dos trabalhos anteriores de França, neste, tanto os movimentos dos corpos quanto os movimentos de câmera e de corte são lentos, acompanhando o ritmo ditado não apenas pelo andamento da ária, mas principalmente pela suavidade das carícias”, explica a curadora sobre o trabalho que fica no subsolo da galeria ao lado de outros nomes que expõem um corpo masculino erotizado – pense em trabalhos de Hudinilson Jr, Alair Gomes,  Luiz Frangella e Robert Mapplethorpe. Há uma necessidade de apreender o que seria o corpo ideal antes que ele seja sugado ou apagado ou transformado.

Untitled, de Luis Frangella, de 1983_4
Untitled, de Luis Frangella, de 1983_4
Reencontro, Rafael França, de 1984
Reencontro, Rafael França, de 1984

“Como se cada corte, cada fissura, cada deformação dos corpos, da imagem e da narrativa sugerissem um erotismo em latência e, junto a ele, uma sensação de ameaça, de que algo sobre o qual não se tem controle está para acontecer. Afinal, lembra Bataille, ‘entre um ser e outro há um abismo’, uma descontinuidade que busca ser vencida pela junção erótica dos corpos. No entanto, essa descontinuidade é irredutível: ‘Este abismo é profundo, e não vejo como suprimi-lo. Somente podemos, em comum, sentir a sua vertigem. Ele nos pode fascinar. Este abismo, num sentido, é a morte, e a morte é vertiginosa, fascinante'”, pontua a curadora que selecionou também trechos de textos que dialogam com o trabalho de Rafael França. Caio Fernando Abreu, Arnaldo Xavier, João Gilberto Noll, Ana Cristina César e Roberto Piva – todos os escritores produziram na mesma época que o artista e traziam questões que tangenciavam e cruzavam sua pesquisa.

Em Combat In Vain, por exemplo, o artista cria uma narrativa experimental que transmite uma sensação de perseguição: a noite escura torna-se ainda mais ameaçadora por uma cacofonia de sons e montagens rápidas de imagens que definem a noção de modernidade – arranha-céus, carros, monitores de vídeo. O final dramático vem acompanhado de uma risada angustiada e uma taça que transborda um líquido vermelho-sangue. 

Insônia, de Rafael França, de 1989
Insônia, de Rafael França, de 1989
A chamada, de Leonilson, de 1986
A chamada, de Leonilson, de 1986

Outras conversas parecem bastante pertinentes. Em Beautiful PeopleDavid Wojnarowicz retrata o último dia de uma drag glamourosa, ambígua e suicida. O artista americano faleceu de complicações relacionadas ao HIV. Leonilson, QUE também foi vítima da AIDS, encontra Rafael na insistência em colocar a angústia dessa geração à mesa, sem medo do medo. Em A Picture Can’t Take Me, Cibelle Cavalli Bastos discute a transformação do “eu” propondo uma conversa sobre self e autorretrato com uma máquina. “O conjunto de dados fornecido à máquina é composto de imagens minhas, da época em que era cantora, assim como imagens do meu perfil no Instagram. A máquina então gera novas imagens de mim, portanto, gera uma Selfie assistida por inteligência artificial”, explica a artista. O urubu de Luiz Roque é a vertigem e a morte em si e, para finalizar, Delirar o racial apresenta uma atualização de Prelúdio de uma morte anunciada: Davi Pontes e Wallace Ferreira investigam relações entre duração e exaustão, repetição e precisão, entre a dança e a luta/defesa, como num jogo de capoeira – expressam um entrelaçamento profundo entre corpo, movimento e território no que André Lepecki chama de “coreopolítia”. Davi pergunta: E se a partir de agora pudéssemos enfrentar o mundo sem o fantasma da linearidade? Sugerem uma coreografia sem tempo e espaço definidos em um sublime diálogo com Rafael França.  Os corpos de ambos os trabalhos, Delirar o racial  e Prelúdio de uma morte anunciada, movimentam-se delicadamente e lentamente, num processo coreográfico de ação e reação, como numa conversa, e lutam contra um futuro quase certo.

Getting Out, de Rafael França, de 1984
Getting Out, de Rafael França, de 1984

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