Home EditorialArtigos Desmistificando Frida Kahlo: por que a artista mexicana se tornou o ícone que é hoje?

Desmistificando Frida Kahlo: por que a artista mexicana se tornou o ícone que é hoje?

Convidamos a curadora Julia Lima para entender como Frida foi de “esposa de artista” a um mito inconfundível

por Giovana Nacca
Frida Kalo e Diego Rivera. Foto: Martin Munkacsi

Está para nascer alguém que não reconheça a imagem da mulher de flores na cabeça, monocelhas e vestidos com bordados coloridos. Frida Kahlo é, sem sombra de dúvidas, uma das personalidades mais reconhecíveis do mundo há décadas. Para quem a vê hoje, pode parecer difícil de acreditar que seu marido e também artista, Diego Rivera, já foi infinitamente mais conhecido do que ela própria. Mas a verdade é que em vida, ela era mundialmente referida apenas como “a esposa de Diego”. Frida veio a falecer em 1954, aos 47 anos de idade, com uma fama bastante restrita, tendo realizado sua primeira exposição solo em seu país natal apenas no ano anterior. Somente há três anos, quando sua obra “Diego y Yo” (1949), foi vendida por US$ 34,9 milhões (R$ 188 milhões) na Sotheby’s, ela desbancou o recorde detido até então por Rivera como o artista latino-americano mais caro em leilão. 

Entre 1932 e 1933, enquanto o casal morava em Michigan para que Diego realizasse seus murais no Instituto de Artes de Detroit, a única jornalista que veio entrevistar Frida Kahlo publicou uma matéria cuja manchete era: “Esposa do mestre muralista se diverte com obras de arte” – um exemplo clássico do tratamento social que considera o artista homem como mestre, enquanto o trabalho de uma mulher é reduzido a mera recreação. No entanto, a artista nunca foi de levar desaforo para casa. Nessa mesma entrevista, ela responde: “[Rivera] se dá muito bem para um menino, mas sou eu a grande artista”. 

Frida Kahlo, Autorretrato na Fronteira entre o México e os Estados Unidos, 1932

Segundo a pesquisadora e curadora Julia Lima, Kahlo começou a ganhar alguma notoriedade no meio artístico, a partir da exposição que ela fez em Paris em 1939, às vésperas da Segunda Guerra, onde conheceu diversos artistas surrealistas europeus.
Na cidade da luz ela já exerceu todo o seu magnetismo com grandes nomes das artes, sendo um dos principais motivos pelos quais artistas franceses e imigrantes escondidos em Marselha, no Sul da França, como Remedios Varo, Lenora Carrington, André Breton e outros, decidiram fugir para o México. 

No âmbito popular, muitos estudiosos apontam o sucesso de sua biografia escrita por Hayden Herrera, em 1983, como o ponto inicial da “fridamania” que conhecemos hoje. O livro, que ainda apresentava a artista como “um ícone a ser descoberto”, inspirou a produção do filme estrelado por Salma Hayek em 2002 e, como quase tudo o que ascende nas terras norte-americanas, a intensa história da mexicana virou um produto comercial bastante lucrativo. Somente no ano do lançamento do longa-metragem, nos Estados Unidos foram inauguradas seis exposições, quatro novelas, quatro peças teatrais, quatro óperas e três balés, todos centrados na história da artista. Claramente não demorou muito para vermos seu rosto estampado em bottons, imãs, camisetas, ecobags, e quaisquer outras bugigangas. 

Sua ascensão no imaginário popular durante as décadas de 1980, 90 e subsequentes, coincidiu com os avanços das pautas políticas de identidade. Kahlo se tornou uma figura representativa para comunidades queer, latino-americanos, mulheres, pessoas com deficiência, e outros. É claro que a história por trás de uma mexicana comunista, não condiz com sua transformação em mercadoria estadunidense. Mas por baixo das camadas superficiais generalizadas, existe uma mulher com vida e produção artística dignas de ser um mito. 

CASAMENTO: NEM RECATADA, E NEM “DO LAR”

Ao mesmo tempo em que a imagem de Frida é comumente erguida como um símbolo feminista, sua vida amorosa frequentemente se sobressai e ofusca as discussões políticas e poéticas de seus trabalhos. E, apesar de a narrativa mais vendida sobre o conturbado relacionamento da artista com Diego retratar uma versão fragilizada de Kahlo, com cartas megarromânticas e conteúdos autodepreciativos, há um outro lado desta história, muito menos visibilizado, que contrasta com esta abordagem. 

Frida e Diego no dia do casamento, no Reyes Studio em Coyoacán, 1929. Foto: Ernesto Reyes

Numa época em que as mulheres não tinham direito a voto e eram educadas para serem uma boa esposa e uma boa “dona de casa”, a artista, desde a celebração de seu casamento, quando ela tinha 22 anos de idade, já apresentava indícios de uma noiva nada convencional. Na cerimônia simples, com a presença única do pai de Frida, ela dispensou o véu, a cor branca e toda a tradição, optando por um vestido comum – aliás, um dos menos luxuosos que ela viria a usar posteriormente – e na fotografia oficial, amplamente divulgada em diversos jornais da época, é vista fumando. No relacionamento, ela também sempre buscou ter uma posição de independência, fazendo questão de dividir as contas. Ainda que o muralista tenha sido um dos nomes mais influentes da época, ela nunca o deixou bancá-la.

SEU VESTUÁRIO ERA UM ATO POLÍTICO

As saias longas e coloridas, xales e blusas bordadas definitivamente moldaram nosso imaginário sobre a artista. O que muitos não sabem é que esse estilo era pouco convencional para alguém de contexto social privilegiado como Kahlo, e mais comum entre trabalhadoras da região de Tehuantepec, no sul do México, como empregadas domésticas, cozinheiras e vendedoras ambulantes. Apesar da ampla exposição a espaços luxuosos da elite, Frida optou por não usar as grandes marcas ou adotar o estilo da moda moderna ditados pela Europa e Estados Unidos, preferindo o guarda-roupa tradicional tehuano oriundo de sociedades matriarcais. 

E como não falar calças e ternos de Frida? Ainda na adolescência, ela se vestia com roupas ditas “masculinas”, quando o uso de calças por mulheres ainda era bastante incomum, senão desaprovado. 

Frida Kahlo, “Autorretrato com cabelo cortado”, 1940

SUA AMBÍGUA RELAÇÃO COM A MATERNIDADE 


Frida Kahlo, “Meu nascimento”, 1932

Em 1932, Kahlo perdeu sua mãe poucos meses depois de seu segundo aborto. Questões relacionadas a maternidade e morte, então, circundou seus pensamentos naquele período sob diferentes roupagens e foram traduzidas em obras como “Meu nascimento”, “Hospital Henry Ford”, bem como na gravura conhecida como “Frida e o aborto”, todas produzidas naquele mesmo ano. 

A artista tratou o aborto com uma cabeça muito a frente de seu tempo. Além dos espontâneos, acredita-se que ela também teria feito um vonluntário por questões de saúde. Na arte, ela retratou o tema de forma nua e crua quando ninguém considerava o assunto digno de ser reproduzido. 

Frida Kahlo, “Hospital Henry Ford”, 1932

A questão sempre foi ambígua em sua vida. Apesar de expressar em suas cartas o intenso sofrimento pelas perdas gestacionais, ela também já chegou a afirmar que não tinha nascido para a maternidade. Julia Lima também nos chama atenção para o contexto social da época, que certamente não facilitou para a mexicana. Se até hoje uma mulher que escolhe não ter filhos é considerada incompleta, quem dirá cerca de oitenta anos atrás.

OBRAS QUE NÃO APENAS SÃO TESTEMUNHAS DE UMA VIDA INTENSA, MAS QUE FALAM POR SI 

Para além da mística que se criou em torno de sua história pessoal e personalidade vanguardista, suas pinturas falam por si só. Em sua autoformação, Frida Kahlo desenvolveu um estilo completamente singular. Tratou temas como morte, política e dores, com uma sinceridade desarmante, expondo a vulnerabilidade humana como nenhum outro. Para Lima, um dos maiores valores da produção de Kahlo reside na maneira como a artista conseguiu elaborar uma ficção biográfica, enriquecida pela incorporação de símbolos de sua identidade mexicana. 

Mesmo em seus famosos autorretratos, ela foi capaz de transbordar seus assuntos para além de sua biografia, adicionando camadas de significado universalmente acessíveis. Essas produções, inclusive, lhe permitiram conquistar um espaço frequentemente negado às mulheres: “ela não é a modelo de um artista, ela está falando dela mesma e se colocando como protagonista da própria história”, analisa a curadora. 

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