A 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que apresentará 198 filmes, começa hoje em formato online e com uma programação de exibição em dois cinemas drive-in na capital: o Belas Artes drive-in e o CineSesc Drive-in. Entre os selecionados, está o documentário Coronation, produzido à distância pelo artista e ativista Ai Weiwei.
Como o próprio nome indica, o filme revela detalhes sobre como a China lidou com a pandemia do coronavírus. Como já era de se esperar, quando se trata de trabalhos do Weiwei, a obra questiona o controle de Estado de sua nação e tenta refletir sobre o que o povo chinês comum passou. Ai weiwei apresenta uma imagem dualística da China moderna como uma força de grande poder, para o bem e para o mal.
Em Janeiro de 2020 o governo chinês isolou Wuhan, a cidade que registou os primeiros casos conhecidos de infecção pelo coronavírus. Em seguida a imposição se estenderia ao resto da província de Hubei, numa quarentena que manteve em casa cerca de 57 milhões de pessoas durante pouco mais de dois meses. Em agosto, imagens de festas e aglomerações na mesma cidade chocou o mundo que já vivia o impacto humanitário, psicológico e econômico do vírus que se espalhou pelo mundo. Bom, ainda vivemos: atualmente morrem cerca de 500 pessoas por dia no Brasil e o resultado desta crise ainda é incalculável.
Mas o período crucial de isolamento na China ainda permanece um mistério, com poucas imagens escapando das garras dos censores locais. Já compreendendo a proporção da doença e a forma como o governo de seu país lida com a informação, Weiwei contratou equipes de filmagem e usou gravações de voluntários somadas a imagens de drones – mostrando a cidade completamente vazia – para construir sua obra que impressiona de cara pelo rigoroso bloqueio. Fica bastante claro, também, como aquele país é capaz de mobilizar enormes e eficazes recursos e sistemas, apesar do grande custo humano.
Apesar dos dados oficiais não serem confiáveis, a China se saiu melhor do que muitos países para controlar a epidemia, com 4.700 mortes em comparação com mais de 150 mil no Brasil e mais de 220 mil nos EUA – até agora! O Partido Comunista não mede esforços para proteger a população, mas que valor a população média precisou pagar?
A impressão geral é de incrível eficiência. As máquinas da UTI trabalham a todo vapor. Médicos, apesar de exaustos, trabalham com máxima proteção. E os trabalhadores do crematório trabalham tanto que reclamam que suas mãos doem. No entanto, conforme o filme avança, as questões humanitárias ficam mais aparentes: um voluntário cujo trabalho foi concluído não tem permissão para sair da zona de quarentena, então dorme em seu carro num estacionamento – uma nota do press kit afirma que ele conseguiu entrar para Henan após o término das filmagens, onde ele se matou – e um homem luta para ter permissão de pegar a urna do pai sem a presença de funcionários do governo. Dores necessárias? Ao tensionar a vida comum em uma época incomum e as decisões do governo chines, ele se pergunta se a submissão deve ser o custo da proteção.
Em compensação, em muitos outros países os cidadãos foram deixados no escuro e à solta para morrer à medida que a política oficial e os programas de contenção implementados oferecem muito pouco, muito tarde. Weiwei concentra seu primeiro olhar na própria paisagem de Wuhan, suas edificações monumentais e fantasmagóricas banhadas por um cinza quase mórbido, e então nas pessoas sobreviventes dentro dela. Muitos deles lutam contra um dilema que agora enfrenta em todo o mundo, à medida que a liberdade pessoal e a segurança pública começam a parecer forças opostas.
Afinal, boa parte da estratégia chinesa envolve a coleta e o controle de informações e da população com precisão sem precedentes. E o fato do governo saber onde todos e tudo estão em um determinado momento soa como uma distopia, mas também pode ser a maneira mais eficaz e eficiente de reprimir uma praga. Apesar dos dados oficiais não serem confiáveis, a China se saiu melhor do que muitos países para controlar a epidemia, com 4.700 mortes em comparação com mais de 150 mil no Brasil e mais de 220 mil nos EUA – até agora! O Partido Comunista não mede esforços para proteger a população, mas que valor a população média precisou pagar? Que preço nós estamos pagando pela nossa liberdade? O filme, sem dúvidas, nos instiga uma sensação estranha e contraditória.
Além de voluntários e equipes pagas, ele conta que foi auxiliado por sua parceira, Wang Fen, cujos irmãos moram em Wuhan. “Ela teve um envolvimento profundamente emocional”, lembra o artista ao New York Times. De acordo com a matéria publicada pelo jornal americano, o artista esperava exibir Coronation primeiro em um festival de cinema. Segundo ele, os de Nova York, Toronto e Veneza manifestaram interesse. Mas, depois, recusaram o filme. Ele revelou que a Amazon e a Netflix também rejeitaram o longa. Para Ai Weiwei, “muitos festivais e empresas querem fazer negócios na China e, por isso, evitam tópicos que podem irritar Pequim, algo que outros diretores chineses dizem ser comum”. Que bom que esse não é o caso do Festival de Cinema de São Paulo.