Uma cadeira é uma cadeira é uma cadeira,
e quanta diferença existe na mesma ideia!
Tipologia que consiste no apoio horizontal descolado do chão e suportado por pés, para que as pernas descansem na posição sentada do corpo. Cadeiras e bancos têm pernas que substituem momentaneamente as dos humanos. Às vezes as cadeiras têm braços, que também dão trégua e descanso. E têm costas, de onde vem a palavra encosto. Pernas, pés, braços, encosto, assento: a cadeira é a imagem de uma pessoa sentada. A familiaridade da forma escultórica faz dela uma atração contínua e fascinante para o artista.
Esta exposição conta com cerca de cinquenta obras – entre cadeiras, poltronas, bancos e banquinhos – de 51 artistas contemporâneos e modernos. Várias delas foram feitas especialmente para a mostra e são inéditas. Ainda que a maioria possa ser usada e siga algumas regras estruturais inescapáveis, estas criações de artistas se descolam das exigências do design. Se tipicamente o designer industrial precisa considerar questões como a produção em escala ou a ergonomia, artistas podem se aventurar com espontaneidade em materiais e técnicas, comentando dinâmicas sociais, políticas, tecnológicas e culturais.
Pedras arqueológicas mostram que assentos estão entre nós desde a era neolítica, na transição do nomadismo para os primeiros assentamentos. Não é preciso muita imaginação para figurar nossos ancestrais encontrando apoio e repouso em rochas ou troncos de árvores, como rememoram o bancos de Amelia Toledo e de Edgard de Souza, as amarrações de galhos inquietos de Marcius Galan, a forma de tronco de palmeira de Tiago Mestre ou o jabuti de Makaulaka Mehinaku, no qual os contornos do animal estão sugeridos pela madeira bruta.
No Brasil, o banquinho de todo dia, popular e anônimo – o dos trabalhadores da construção civil, da roça, de camelôs –, concebido com simplicidade a partir de materiais encontrados, inspiram Rivane Neuenschwander, Nicolás Bacal, Keila Alaver, Campana e Mônica Ventura, que criou o banco junto a seu pai, o pedreiro Osvaldo Costa. José Bento transforma sua banqueta em balcão, com elementos de uma roda de samba – cachaça, pandeiros – em paralelo com a função ritualística no apoti sobre o qual, na obra de Jaime Lauriano, repousa o alguidar cheio de pedras portuguesas.
Marcos Chaves resgatou sua cadeira com encosto de ripas de caixote de feira em uma calçada do Rio – um ready made. Com outros elementos encontrados na rua, Alexandre da Cunha e Rafael Triboli criam uma namoradeira que abre espaço para uma conversa à meia-luz. Em Entre o Céu e a Terra, Ernesto Neto faz do banco de peroba rosa o espaço para um elo afetivo, um romance, emoldurado pela corda de crochê que pende do alto. Chamado Juntes, o banco de base articulada com um amortecedor de scooter, de Iván Argote, pede acordo entre seus ocupantes: ele funciona como uma gangorra ou um banco de praça para conversar, ficar, ninar, enfim, estar junto.
Bancos e cadeiras podem ser símbolos de hierarquia e poder. O termo chairman, o presidente da empresa, se traduz literalmente como “o homem da cadeira”. O trono de faraós, imperadores, reis e chefes tribais ressoa na cadeira de Seu Fernando da Ilha do Ferro, sua majestosidade implicada pela altura elevada do assento e do espaldar. Dessa matriz pomposa vêm as poltronas largas e com braços como a de Flávio de Carvalho para a Fazenda Capuava ou a cadeira de balanço do mexicano Jorge Pardo, talhada com um excerto da tela L’Atelier du peintre de Courbet.
Rirkrit Tiravanija reivindica a cadeira como instrumento de descanso e não de trabalho ao inscrever no encosto “do not ever work” (não trabalhe jamais). A forma elaborada por Lucas Simões encontra-se em “estado de repouso” e leva o nome Dormente, em referência ao conceito aristotélico de potência.
Uma cadeira vazia é a representação de um corpo que não está. Enxergamos pessoas e personagens na Romana de Ana Mazzei, na Silla Castigada de Carlos Bunga e em Arm de Brian Griffiths. Existe ausência mais contundente que a da dupla de poltronas que Maria Thereza Alves criou após a morte do seu marido, o artista Jimmie Durham (continued life 1800-2022)? Pensando nessa distância, Raphaela Melsohn chamou a sua de o vazio se preenche.
Há indicações de encontros, como na interdependência dos corpos da colaboração de avaf com Yuli Yamagata. A cadeira tripla do coletivo Opavivará! é um convite à interação social, alegoria da amizade nas praias do Brasil que relê o tipo comum da cadeira dobrável de alumínio e tela de nylon, sobre a qual interagiram também Detanico Lain e Rochelle Costi. Nelas o tempo passa lânguido: uma bordada com ponteiros de relógio, a outra rodeada por uma pequena paisagem vegetal.
O Móvel de Daniel Albuquerque é uma combinação entre o seu material primário, o tricô, e o estofamento de futon. Desenrolado, adquire formas que vão da chaise à esteira. Sonia Gomes idem: aplica a mídia tátil e sensual de tecidos, rendas, cordões e amarrações à superfície dura e seca do banquinho de madeira de quatro pés, o mesmo modelo popular ao qual Marepe faz referência. Com o humor característico que permeia seu trabalho, o artista baiano talhou o banco no formato de lacre de garrafa de champagne.
Efrain Almeida esculpe em sua cadeira pés de bode, e faz o assento com a pele ao modo da cultura sertaneja. Vivian Caccuri desvela da cadeira de sentar um instrumento musical de cordas. Nos quatro cantos do seu banco Bocada, Mano Penalva incorporou bocas de crochê de uma mesa de sinuca – nos quais, quem sabe, pode-se guardar um iPhone ou pequenos objetos. O banco de papelão de Jarbas Lopes é recheado de velhos documentos, contratos vencidos, papéis aleatórios – em referência aos papéis-moeda tradicionalmente guardados no banco, a instituição financeira. Uma obra de arte cujo nome é “você pode sentar”; isto é, sentar em uma pilha de dinheiro.
Os bancos de Daniel Senise, Gabriel Orozco e Marcelo Pacheco têm lastro na linguagem moderna, com detalhes próprios a cada poética; Senise, por exemplo, usa no assento tacos de madeira removidos de um edifício assinado por Franz Heep, do final dos anos 1950.
Qual estúdio de artista não tem uma cadeira? Quantas vezes ela não foi central a uma obra? Edgar Degas retratou uma poltrona vazia, de costas para o espectador. Van Gogh pintou a sua como natureza morta, o cachimbo apoiado sobre o trançado de fibra natural. Joseph Beuys a fez efêmera, de gordura, assim como Adriana Varejão, de carne seca. Joseph Kosuth foi do objeto à representação e ao conceito, na clássica obra One and Three Chairs. A cadeira elétrica de Andy Warhol continua a provocar arrepios, 60 anos depois.¹
As propostas nesta exposição são uma amostra ínfima de um campo vasto.² Artistas que fizeram do design também uma profissão – como Abraham Palatnik e Geraldo de Barros – desenharam ao menos uma dúzia de assentos, sinal de um desafio que não se esgota (Lygia Clark pousou em um famoso retrato sentada na cadeira de Palatnik exposta aqui; a poltrona de Barros é um protótipo).
Uma cadeira é uma cadeira, nunca “a” cadeira. O Mundo das Ideias é um bom lugar para uma cadeira que em nada consiste, como nas imagens – indeléveis à memória coletiva – de astronautas “sentados” no próprio corpo, flutuando no espaço sideral, sem gravidade. Marcel Breuer, ao projetar assentos com o mínimo possível em seus experimentos na Bauhaus³ disse, utopicamente: “No fim das contas, sentaremos em colunas de ar resilientes”.
– Nessia Leonzini e Livia Debbane
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