“Trinca” na Galeria Gare

Obra de Cacau Careta – Divulgação

trinca (substantivo feminino)

1. Rachadura ou fissura em superfície sólida; pequena abertura ou fratura geralmente causada por impacto, tensão ou desgaste: A parede apresentou uma trinca após o impacto do martelo.

2. Conjunto de três cartas de mesmo valor num jogo de baralho, formando uma combinação específica segundo as regras de certos jogos: O jogador revelou uma trinca de ases na rodada final.

3. Conjunto de três elementos, pessoas ou coisas, reunidos ou agrupados por alguma característica comum ou por estarem associadas num mesmo contexto: A trinca de arruaceiros causou confusão na praça.

A trinca aqui exposta apresenta artistas com três linhas de pesquisa que, partindo de distantes origens em termos de mídias, suportes e processos, ainda assim convergem em sua intenção de criar rachaduras: seja na percepção sensorial e na interpretação que damos a uma imagem, nas expectativas sociais que guardamos sobre como um corpo humano pode ou não ser enxergado, ou ainda na matéria física mesma de que se produz uma obra de arte.

_i. Gabriel Almeida abre a partida com um conjunto de pinturas inéditas da fase mais recente de sua produção, em que fissura o espaço liminar entre a sensibilidade contemplativa do gênero paisagem e a expressividade de seu simbolismo – de sabor particularmente místico – sem perder de vista sua sempre presente sagacidade na escolha de temas e sujeitos; atravessando escalas que ora demandam uma fruição distante, ora os olhos colados sobre a tinta, sem jamais comprometer a complexidade pictórica de suas pinceladas. _ii. Em sua jogada, Cacau apresenta uma série de instalações e objetos, concebidos diretamente para e sobre o espaço da galeria: cartas, vidros, pedras, cacos, garrafas, tijolos, que materializam sensações, situações e visões ubíquas ao urbano – os escombros de construções e máquinas, a sorte e o azar, as incessantes filas, violências, gozos e vícios, o habitual que se repete de maneira obsessiva, o ser que consome a si próprio como a si própria consome a cidade. _iii. Já Gabriel Katsuhiro, pela primeira vez exibindo um conjunto unificado de sua obra, monta uma canastra suja de cenas criadas a pinceladas decididas, composições de contraste alto e cores em saturação baixa – com imagens que vão da iconografia religiosa tradicional à crueza do fetichismo sadomasoquista e revelam em comum um olhar para estados sublimes da experiência fenomenológica, em notar do corpo e da carne em momentos em que o espírito toma sobre elas precedência.

Uma trinca não implica necessariamente em destruição total; revela antes a fragilidade das estruturas que racham, evidenciando a necessidade de reparos ou, por vezes, de completa reconstrução: seja da realidade em si, seja de nosso olhar sobre ela.

Alice Granada
Junho, 2025