Em sua segunda individual na Vermelho, Clara Ianni apresenta desdobramentos de sua pesquisa iniciada entre 2022 sobre a relação entre capitalismo e religião. A pesquisa se debruça sobre o mito moderno da separação entre humanidade e natureza, suas raízes na expansão capitalista e na extração colonial, abordando dois esgotamentos contemporâneos, o humano e o ambiental, e propõe um exercício de imaginar como viver depois disso: Como regenerar? Como ressuscitar?
Em todo o térreo da exposição, da entrada até a Sala 1, Tapete é um memorial efêmero, inspirada nas procissões católicas de Corpus Christi. A partir de uma tradição iniciada no período da colonização portuguesa, o feriado é marcado pela confecção de tapetes de serragem que colorem ruas e avenidas de várias cidades brasileiras. Com diferentes cores, os tapetes são feitos com desenhos de cenas bíblicas, de flores, de objetos devocionais e frequentemente trazem imagens e mensagens locais. Os tapetes, depois de serem desenhados e preparados por dias, são desfeitos conforme as procissões passam por eles.
Na obra de Clara Ianni, o tapete traz um grande desenho de uma flor híbrida, que só se apresenta ao entrarmos na Sala 1, o Cubo Branco da galeria e espaço tradicionalmente reverenciado na arte. O desenho nasce da junção de duas metades: de um lado, a imagem da flor de Pau-Brasil cortada ao meio foi retirada de uma enciclopédia botânica. Do outro, uma derivação desse desenho foi gerada por um software de Inteligência Artificial (IA), instrumento de trabalho utilizado no cotidiano da artista. Tapete traz um dos elementos formadores do que hoje se chama Brasil, a planta que lhe conferiu o nome e que, por sua extração para a produção de corante vermelho, chegou a ser declarada extinta, ao lado de uma imagem gerada por um software corporativo que recombina imagens produzidas pelos usuários, em larga escala, assim como commodities. Nesse entroncamento, Tapete traça uma relação com o extrativismo do passado e do presente, questiona a divisão entre natureza e cultura, e propõe uma celebração à interdependência entre humanidade e seu entorno na reprodução da vida.
A ideia de reprodução da vida e da interdependência entre humanidade e natureza se desdobra em uma série de desenhos de observação, Union(União/Sindicato). Cada conjunto da série parte de uma planta vendida como commodity em ciclos econômicos brasileiros, como café, cana e soja. A partir de uma imagem de uma enciclopédia botânica e derivações desta imagem feitas por um software de IA, a artista reproduz, em pequenas telas, desenhos de observação feitos à mão com grafite. As telas são organizadas em uma forma que lembra a grade, a taxonomia, a classificação museológica, mas em percursos desviantes que sugerem ramificações e hibridizações não tão ordenados. Union(União/Sindicato) une três convenções da representação do natural (enciclopédica, desenho à mão livre e imagem gerada por Inteligência Artificial) e questiona a separação (Terra, o corpo e as máquinas) a partir do acúmulo do subproduto digital, o descarte do mundo contemporâneo, o resíduo. A série ocupa duas salas da exposição. Na Sala 1, junto ao Tapete, três conjuntos lidam com a representação da flor do pau-brasil em diferentes estágios: a semente fechada, a semente aberta e a flor.
O tempo se torna, então um dado importante de Segunda Natureza: o tempo que desfaz o tapete, o tempo do desenvolvimento da semente até a flor e o tempo acelerado do desenvolvimento tecnológico e a desaceleração.
É nesse contexto que se insere Que horas são?, uma série de esculturas que abordam a relação entre múltiplas temporalidades. Passado, presente, futuro, tempo humano e tempo da natureza aparecem entrelaçados em rochas que foram perfuradas para o emaranhamento com relógios de pulso digitais. As esculturas criam um diálogo entre o tempo geológico e o tempo social, aproximando as diferentes escalas temporais.
Clara Ianni retorna, então, ao começo com Segunda Natureza, vídeo que dá título à exposição. O vídeo é elaborado partir da história do Éden, que consta no livro do Gênesis, o primeiro capítulo da Bíblia, onde um homem primordial aparece como ser excepcional, separado do seu entorno, e que deve “submeter a terra”, e “dominar os peixes do mar, as árvores do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra”. Assim, a humanidade é separada dos meios de reprodução de sua própria vida e, para sobreviver, deve submeter seu entorno, e submeter-se à essa separação.
No filme de Ianni, rodado dentro da Igreja Luterana de Maastricht (Holanda), vemos essa história contada de dentro do território simbólico desse afastamento. Vemos a história mudar enquanto a natureza se faz penetrar nesse espaço, primeiro como uma sugestão, um presságio que se insinua pelos vitrais da igreja, até que suas janelas sejam abertas, permitindo que uma natureza invada e domine a própria estrutura da disseminação da palavra que impossibilita a vida: o púlpito.
Durante os últimos 15 anos, Clara Ianni trabalhou em torno da relação entre política, história no contexto do capitalismo tardio do Brasil, refletindo sobre o mito da modernização e suas ligações com o colonialismo, imperialismo e violência. Nos últimos anos, a artista tem trabalhado ao redor da ideia de imaginação política, diante da instrumentalização do medo como um dispositivo paralisante.
Assim, a exposição se encerra em seu começo, na fachada da galeria, onde o mural Apocalipse Invertido mostra uma imagem encontrada em um livro de evangelização onde se lê “Brasil e o Apocalipse”. Aplicada à fachada de ponta-cabeça, a imagem será construída aos poucos, ao longo do período da exposição, por meio da performance “Trabalho depois das 18h”, onde Ianni desbastará a grande parede da entrada da Vermelho, por onde passaram centenas de projetos, atrás da construção pictórica da imagem invertida. O trabalho joga com o fim do mundo enquanto instrumento de bloqueio da imaginação, através do medo, e como possibilidade de reinvenção. O trabalho se completa, então, no fim da exposição. Ou não.
Clara Ianni passou a ser representada pela Vermelho em 2013, após participar de Untitled (12ª Bienal de Istanbul), curada por Adriano Pedrosa e Jens Hoffmann. Essa participação consolidou uma trajetória marcada por importantes participações em exposições institucionais como o 33º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (2013) a 31ª Bienal de São Paulo (2014); Fire and Forget. On Violence, no Kunst-Werke – Berlim (2015); X Berlin Biennale (2018); Histórias feministas, no MASP, em São Paulo (2018); 21º Bienal Sesc_Videobrasil (2019); 34a Bienal de São Paulo (2021); Soft Water Hard Stone: 2021 New Museum Triennial (2021).
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