A Galeria Jaqueline Martins apresenta a individual Lia D Castro: a Cumplicidade Refletida, com texto de Mariana Leme. Ela escreve: “Há um homem deitado no sofá, de costas para o espectador. Há outro homem deitado no sofá — ou seria o mesmo? — sobre o colo de uma mulher, cujas roupas são feitas de pintura e esparadrapos. A mesma cena íntima se repete algumas vezes, num interior geométrico feito de azuis e verdes. Ela lê um livro. Às vezes ele também lê. Há um abajur. Dentro de algumas pinturas, outras pinturas, como um caleidoscópio. Por meio da repetição — de gestos, cenas, personagens e cores —, a artista Lia D Castro deixa evidente a dimensão reflexiva das pinturas e dos encontros que elas representam, tanto no sentido de espelhamento quanto no de contemplação e pensamento. Em uma delas, há a citação de bell hooks: ‘O amor é uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança’, que acompanha as bordas da parede. Talvez todos os trabalhos de Castro estejam ancorados no amor. Não o amor burguês que muitas vezes se confunde com exploração de gênero, mas aquele definido por hooks, que é também ‘um espaço de despertar crítico e de dor’. Que é ativo, colaborativo e cúmplice: no processo da pintura ou da fotografia, nos encontros e nas trocas sociais, afetivas, financeiras, criativas e criadoras. Além de artista, Castro é também intelectual, educadora e trabalhadora sexual, entre muitas outras coisas. Os retratos são de seus amantes e clientes, com os quais estabelece uma relação de intimidade e compromisso. […] Uma das cenas de interior que compõem a série Axs Nossxs Filhxs é o retrato de Davi, de quem vemos, repetidas vezes, a parte de trás da cabeça. A tinta a óleo, espessa, reforça a opacidade daquilo que não nos é dado a conhecer, como seu rosto, ao mesmo tempo em que acolhe o olhar, em fragmentos de seu corpo. […] Em outras obras, os modelos parecem estar em poses incômodas, ou pelo menos instáveis, nus, de cócoras, sobre cadeiras de rodinha. Ao lado de um desses retratos, que mostra o corpo de um homem branco anônimo, se lê: ‘aquele que é digno de ser amado’, o que deixa implícito que outras pessoas não são. […] De maneira sutil e contundente, Castro trata de questões políticas que são também profundamente violentas, como a série de naturezas-mortas, composta de pinturas que medem 20 x 30 cm. Além de retomar este gênero considerado o mais baixo na hierarquia pictórica, segundo a tradição ocidental, a artista alude à média de expectativa de vida das pessoas trans no Brasil — que morrem, frequentemente assassinadas, entre os vinte e os trinta anos de idade. […] Junto das pinturas, a exposição apresenta gravuras e desenhos da série Michê, hipocrisia e carne, retratando homens de costas e seus encontros efêmeros e semi-clandestinos. […] Os trabalhos de Triplo do Auto/Retrato, da série Seus filhos também praticam podem parecer mais agressivos ou diretos que os trabalhos em pintura. Mas são também memória e construção da cumplicidade física, sexual e intelectual; relações que, quando expostas em seus fragmentos, nos convidam a imaginá-las em sua totalidade e sermos, mais uma vez, cúmplices daquelas histórias.”
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