O bom humor característico da relação do artista com os objetos mais triviais, que fazem parte do dia-a-dia e ele transforma em obras de arte, está patente entre as aproximadamente 170 peças exibidas em Guto Lacaz: cheque mate. A mostra permanece em cartaz nos três pisos expositivos do Itaú Cultural (IC), de 1 de agosto a 27 de outubro. A curadoria e o partido expográfico são dos designers Kiko Farkas e Rico Lins, o desenho da expografia tem assinatura de Daniel Winik e a concepção, realização e projeto de acessibilidade são do Itaú Cultural.
Três dessas peças são inéditas: Volare reúne grandes cilindros transparentes, em pé, dentro dos quais um ventilador faz girar aletas sem sair do lugar, criando uma ilusão ótica. Nomes, brinca com uma das obsessões do artista: a nomenclatura e o jogo de palavras. Ele sempre colecionou frases, vocábulos, bilhetes, nomes e frases impressos em anúncios e notas de compras, entre outras, que agora compõem a obra. Eletrolinhas é construída com caixas pretas verticais, como colunas, com fendas e movimentos sutis.
Multimídia, Guto Lacaz é conhecido por suas instalações e performances, além de ter uma produção variada como desenhista, ilustrador, cartunista, designer, cenógrafo, e na assinatura de projetos gráficos editoriais e logomarcas para empresas. Formou-se em arquitetura e eletrônica industrial pela USP, na década de 1970, no entanto, como o próprio diz, não deu certo e decidiu fazer “esse negócio de ser artista”. Com o tempo, ele criou o que chama de convivência lúdica com os objetos – um método de observação e concentração que desemboca em seu trabalho artístico. Deu certo.
O universo do artista – hoje com 76 anos – é uma imensidão de objetos singulares, dispositivos engenhosos e incomuns, vídeos de performances inusitadas, peças com trocadilhos e jogos de palavras. Um fantástico mundo que ele construiu entre elementos visuais de objetos que transitam despercebidos pelo cotidiano de todos. Com a sua interferência, eles ganharam o circuito das artes.
“A produção de Guto Lacaz é marcada por sua criatividade, sempre muito atenta e curiosa, e pela multiplicidade de linguagens em que ele atua”, diz Sofia Fan, gerente de Artes Visuais e Acervos do Itaú Cultural. “Esta exposição celebra a sua trajetória, de quase 50 anos, e lança um olhar panorâmico sobre sua obra”.
Segundo os curadores, a mostra apresenta o trabalho de Lacaz dando luz a sua genialidade e destacando a sua importância no mundo das artes. Eles contam que pegaram o lado B do artista – erro, casualidades, processo criativo, tempo, espaço e verticalidade –, que sempre foi visto como outsider, mas que trafegou por todas as áreas das artes, do cinema e teatro ao livro e as artes visuais.
O seu primeiro trabalho artístico é Escultura com bandeira, criado em 1970 quando ainda estava na faculdade. Trata-se de um pequeno objeto cinético elaborado com arames retorcidos e engrenagens. Para ele próprio, no entanto, a sua carreira começou em 1978 ao ser premiado na 1ª Mostra do Móvel e do Objeto Inusitado, no Paço das Artes, em São Paulo, por um conjunto de trabalhos inscritos. Um deles é a obra Crushfixo, de 1974, também presente na exposição do IC, na qual ele simplesmente afixou uma garrafa do refrigerante em um retângulo de gesso. Assim, começou a fazer sucesso.
Lacaz costuma dizer que erra muito porque faz tudo pela primeira vez e essa é a melhor forma de aprender (leia neste PKD em falas do artista). De erro em erro, ele acerta rotundamente. O público constata isso ao circular pelo espaço expositivo, em peças, por exemplo, como Rádios pescando – uma série de radinhos de pilha enfileirados como pescadores, empunhando linhas de pescar esticadas em direção ao chão, que ele criou em 1986. Ou em Óleo Maria à procura da salada, de 1982, na qual uma lata desse produto com uma antena ziguezagueia em uma bandeja vazia. Ou, ainda, na obra que dá nome à exposição: em cheque mate, ele atribui a um cheque o papel de sustentar um saquinho de chá mate para prendê-lo na xícara.
Vale contar que, certa vez, ele resolveu levar um rolo de papel higiênico para a mesa de seu ateliê e observá-lo por dias e dias, aplicando, então, o seu método de convivência lúdica com o objeto. Por fim, entendeu que era um objeto injustiçado pois tem uma proporção perfeita entre altura e diâmetro, é macio e confortador quando colocado perto do rosto, se desenrola, pode ser usado como luneta e outras utilidades. E concluiu que o papel higiênico merece ser colocado em lugares mais nobres das residências. Surgiu daí uma obra de arte em que um desses rolos serve de base para um pequeno abajur, também presente na exposição (veja sua fala sobre o assunto em vídeos).
Atenção, ainda, para a série Eletro Livros, de 2012, estruturada a partir de livros abertos em páginas com fotografias. Neles, personagens de histórias, como Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato, e Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, além de artistas, como Vladimir Maiakovski e Piet Mondrian, aparecem realizando uma determinada ação. As cenas expostas em cada página são compostas de mecanismos acionados por motores elétricos. Trata-se de uma traquitana artística eletrônica, que dá a ilusão de tridimensionalidade e movimento dos artistas retratados. Ainda, um dos pisos é ocupado por uma grande obra, a Pororoca, uma escultura cinética que pode ser atravessada pelo público.
A mostra também apresenta elementos do ateliê de Lacaz, onde ele guarda todos os seus caderninhos, blocos, fotos, memórias, em uma camada de paredes circulares de cores diferentes. Trata-se de um espaço que os curadores chamam de HD (hard disk), como o próprio artista chama algumas de suas salas onde organiza e armazena seu acervo e materiais referentes ao seu trabalho.
A parede vermelha apresenta suas influências externas e seu encanto por aviões, entre outras. Outra, amarela, tem foco em seu processo criativo, com ensaios fotográficos das performances multimídia Ludo Voo, Eletroperfomance, IOU – A Fábula do Cubo e do Cavalo, referências, objetos, memorabília. Por fim, a azul reproduz fotos desse ateliê, em adesivo vinílico, cobrindo a superfície e gerando uma sensação de imersão dentro do espaço.
Não poderiam faltar as ilustrações que Lacaz fez para a revista Caros Amigos, de 1997 a 2012, e na coluna de Joyce Pascowitch, na Folha de S. Paulo, de 1980 a 1990. Pares Ímpares (2007-2013) reúne colagens digitais feitas pelo artista com Edson Kumasaka para a Revista Wish. Pequenas grandes ações, de 2003, apresenta 12 serigrafias inspiradas em manuais de instruções de eletrodomésticos e objetos diversos.
Vídeos de performances e o teaser (veja em vídeos) do documentário Guto Lacaz – um olhar iluminado, complementam o entendimento do processo criativo do artista e seu olhar para dar vida às coisas que passam invisíveis. O filme é dirigido por Marcelo Machado e conduzido por Farkas e Lins Ele será disponibilizado no streaming Itaú Cultural Play (www.itauculturalplay.com.br), a partir da data de abertura da exposição. A plataforma também pode ser acessada nos aplicativos para dispositivos móveis (Android e iOS), no Chromecast e nas smart TVs da Samsung, LG e Apple TV.
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