O processo de Josi se desdobra no movimento dos gestos, com criações manuais que se manifestam como extensões das mãos. Grãos de terra se juntam e se dispersam, aderindo a onde pousam. Esses grãos passam por peneiras e pilões. Decantam, pacientemente atravessando o tempo. São colocados em uma panela e giram – até que tudo esteja lá – para aqueles que sabem ver. Dentro dos tons de terra, percebe-se o desdobramento da vida, tudo acontece, assentando-se, engrossando, até atingir um contato quase direto com a própria vida. Amasse teimoso, regue, levante, alise, brilhe. A arte, à beira da vida, é um caminho que se move com a terra. Ela surge das temporalidades e vibrações do mundo, de antes que o mundo fosse o que conhecemos. O elemento da arte é, então, um gesto com a terra. Tocar a vida – seres vivos em argila, os vestígios de tudo que nela se guarda. Sentir as temporalidades, inclusive as geológicas, respeitando os ritmos da terra, interagindo com eles por meio dos materiais. Reconhecer os limiares cruzados por aqueles que vieram antes. Essas são experiências entrelaçadas aos gestos artísticos de Josi.
A tessitura das obras de Josi vem da força de suas mãos, manobrando e desviando-se dos cânones bem conhecidos dentro da arte, que se tornaram confortáveis pontos de referência estética. No processo de Josi, uma dobra poética parece se revelar: Um corpo de trabalho nasce com um corpo de matéria. Josi estabelece lugares para que o corpo se impregne de seu próprio ser e do solo através de uma gênese compartilhada e síncrona. Um eu coletivo e ancestral e a terra onde confluências germinam, “uma força que cede, que aumenta, que expande,” onde “nos tornamos nós mesmos e outra versão de nós mesmos,” como nos diz o intelectual e ativista político quilombola Nêgo Bispo. Criar, para Josi, é um “movimento” em ressonância, em confluência com a terra e os lugares de origem de onde ela obtém seus materiais, com o que brota nesses lugares, em uma prática que parece se intensificar fora da linguagem e se liberta das gramáticas cansadas da arte contemporânea, que fingem ser universais.
A jornada artística de Josi começou com esboços em cadernos durante viagens de ônibus, abraçando a crença de que a arte não é um privilégio. Suas experiências em Itamarandiba, Carbonita e Caeté moldaram sua vida como professora. A sabedoria de lavar roupas e trabalhar nos campos a levou a cursar Artes Plásticas na Escola Guignard (UEMG). Do chão de terra de Tabatinga ao chão da cozinha/atelier, esses lugares não se separam em fronteiras, mas se reúnem, porque são, ao mesmo tempo, memória e uma aglomeração de temporalidades. A partir deles, Josi cria. Através de momentos sobrepostos, lugares e narrativas, ela identificou tintas e corantes enquanto fervia feijões na água, manchas de frutas pigmentavam de repente superfícies, e a água lamacenta formava tons de terra e solo.
Com esses materiais e gestos, o processo de pintura de Josi emerge. Ela espera meticulosamente pelos eventos que esses pigmentos criam. Na tela, eles se revelam em espalhamentos, véus, concentrações, dissoluções, desaparecimentos, transparências, esmaltes, espaços vazios e mudanças de cor. Não há desenho prévio, “nenhum risco anterior,” como ela explica, porque não há como parar ou controlar o que não é antecipado. Josi diz que busca uma “curvatura da cor,” mas a temporalidade de cada pigmento é uma experiência que se distingue no papel e no tecido enquanto ela pinta e, portanto, os pigmentos interagem de maneiras diferentes, respondendo constantemente à umidade, temperatura, de acordo com a composição das tintas orgânicas. Não há linhas. Linhas separam. As manchas às quais ela retorna em seu trabalho são afluentes na tela, sobrepõem-se, movem-se e ocupam espaços. Elas criam outra temporalidade, outra cor, ressurgindo em outras imagens.
Josi se aproximou da argila porque a entende como solo que “caminhou de uma rocha, encontrou o vento, a chuva e outros seres, e então foi sedimentar, carregando consigo toda aquela memória.” Em suas mãos, a argila é tratada como “tesouro.” Lidar com a argila é conversar com a tradição de fazer utensílios presentes na vida cotidiana e com os laços ancestrais e memórias do tempo em que pisar no chão significava ter aquele chão sempre presente na vida. O exílio é o oposto: é não ter um lugar para pisar; é reaprender a andar e, portanto, quase se desfazer da saudade das pessoas que outrora habitaram a terra e foram perdidas.
Nas cerâmicas de Josi, há rostos, figuras humanas e corpos contíguos. Ferramenta e corpo se unificam como um só, e, a partir daí, a figuração é um abrigo que materializa o desejo de povoar a vida com a presença para contar outras fábulas que não as do exílio. Nessas esculturas, a convivência, a construção de comunidade e os contos fictícios narram um lugar que o corpo não tinha o direito porque o vazio e a dispersão comandavam o fluxo da vida. “É onde me reúno completamente,” diz a artista. E novamente, ao trabalhar com argila, Josi recorre ao conhecimento e à imaginação que traz do Vale do Jequitinhonha – das pessoas se reunindo, das conversas, das tarefas diárias, das frutas secando ao sol. Tocar essa vida na argila significa reunir presenças, reverter apagamentos e enunciar saberes ancestrais.
grãos de água, gotas de terra é o título da primeira exposição individual internacional de Josi. A mostra reúne obras criadas ao tocar, arrastar e misturar várias temporalidades, materiais, pessoas, presenças e histórias. As obras nos lembram que a arte “é uma conversa de almas, porque vai do individual ao coletivo à medida que é compartilhada” – mais uma vez, Nêgo Bispo nos fala sobre a diferença entre troca e compartilhamento. E assim, as obras de Josi nos convidam a praticar outras maneiras de ver e dar sentido à vida. Suas criações estão aqui para afirmar a presença de pessoas que foram expropriadas de seus gestos, separadas de seu ambiente (o que a civilização moderna chama de natureza), que foram incumbidas de superar (como um desafio, destino e obrigação) as opressões de estar alienado e sem lugar. A presença de pessoas que resistem às guerras das denominações colonialistas, criando relações com todos os seres e com a terra, que é o “anseio original.” Assim como a presença de grãos e gotas, imensas partículas nesse caldeirão da vida que chamamos de mundo.
– Galciani Neves
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