Desde 2018, Davi Pontes (São Gonçalo, RJ, Brasil, 1990) e Wallace Ferreira (Rio de Janeiro, Brasil, 1993) desenvolvem conjuntamente uma prática artística na interseção entre os campos da dança, da performance e das artes visuais. Em seus trabalhos, a dupla executa engenhosas coreografias que investigam as relações entre duração e exaustão, repetição e precisão, resultando em complexas obras híbridas, frequentemente registradas em vídeo.
A expressividade corporal em jogo em seus trabalhos evoca as ideias do teórico André Lepecki, para quem o conceito de coreopolítica designa um “entrelaçamento profundo entre movimento, corpo e lugar.” Na série Repertório (2018–em curso), Pontes e Ferreira contam com a colaboração de outros agentes nas frentes da fotografia, trilha sonora e direção de arte de modo a transpor suas performances em vídeos que funcionam como trabalhos autônomos.
Na obra Repertório n.2, exibida em vídeo no Aquário da Carpintaria e performada em uma única apresentação in loco Davi e Wallace apresentam-se – assim como em todos os seus outros trabalhos em dupla, invariavelmente –, nus, diante de uma plateia a observá-los atentamente. Seus dois corpos negros assinalam e abrem um leque de questões pertinentes ao pensamento contemporâneo nas artes e além. A dupla executa uma coreografia que, gradualmente, ganha corpo, intensidade e velocidade, através de uma expressiva harmonia rítmica alcançada aos poucos ao longo da obra.
A dança, de repente, apresenta-se apenas como a porta de entrada para entendermos uma prática densa e repleta de camadas que tangenciam questões raciais, questões próprias do campo do movimento e, ainda além, questões que desafiam as noções convencionais com que as ideias de coreografia vêm sendo pensadas, desde a modernidade.
Enquanto, historicamente, a dança moderna instaurou uma experiência em que o público espectador tende a esperar por performances e acontecimentos grandiosos, o esforço mínimo e repetitivo dos passos precisos dos artistas contradizem esta noção e resultam, enfim, em uma coreografia expandida, capaz de transbordar tais noções já ultrapassadas.
Como observadores, uma vez imersos em seus ritos performáticos, também não nos importamos mais com ideias pré-concebidas de início e de fim. Estamos apenas a segui-los, a observarmos seus gestos, tomando o espaço por completo e sem um nítido caminho de volta. O percurso é espiralar.
Se o corpo negro, mesmo inerte, parado, ainda evoca a suspeita de um corpo-ameaça – se entendermos que, ainda hoje, as vidas negras são sumariamente desamparadas pelo Estado e vítimas do racismo em todas as suas dimensões –, o fazer coreográfico da dupla aponta para possíveis reelaborações de imaginários coletivos, provando-se para além de um ato artístico, um pleno exercício político acerca da ideia de decolonialidade. Ao passo em que borram o espaço onde dançam, Davi e Wallace borram também fronteiras, recusam a lógica com que o mundo ocidental foi (e ainda é) regido até aqui. Mas, eles parecem nos dizer firmemente, através de seus corpos: apenas até aqui.
– Victor Gorgulho
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