A arte de Paula Garcia é antes de tudo um convite radical à presença física, mental e espiritual. Seus movimentos intentam um enfrentamento às forças que regem os passos humanos numa guiança compulsória, vívida e frutificada a partir de ruídos férreos envolvidos por gemidos de exaustão.
O que se anuncia possui a energia de um exército concentrada numa massa corpórea, contraditoriamente industrial, que floresce, e se transfigura, em moitas de aço. Um super-corpo construído nos sonhos, e assombros, de infância da artista; que não apenas tem na ação o elemento mais importante em sua prática, mas que principalmente busca refletir sobre o que está intrínseco nesta ação.
Paula organiza uma série de feituras que versam sobre os conceitos metafóricos e físicos que o ímã representa, como, por exemplo, atração e repulsão. Ela intui elaborações sobre a capacidade do ímã de atrair metais específicos e reflete sobre os conceitos de afinidade, identidade e essência. Em metafísica, isso pode ser comparado ao modo como certas ideias ou entidades têm uma “atração natural” por outras, cogitando sobre o que significa ser ou existir em relação a outras coisas.
Para pensar nessa relação, ela parte do corpo, do ruído e da arte, por meio de performances de longa duração em que dispõe a si mesma, como um totem, e se volta a um ensimesmar escultórico. A importância estética do seu trabalho se faz evidente como fosse até mesmo uma pintura, repleta de gestos demasiadamente pesados, densos, e dispendiosos que coloca a prova um corpo que insiste em resistir. Paula se preocupa com a qualidade da experiência para o público. Este ponto se revela através de sua presença, direção e atenção que se tornam evidentes em absolutamente todos os segundos de suas performances. A artista entende que esse lugar plástico traz uma expansão para seu trabalho; é a materialidade com gestos coreografados numa poesia visual que extravasa a potência dramática.
Por compreender que a arte deve modificar a nossa identidade, pensa também sobre o ato de transmutação do organismo material do ser humano, a identidade disseminada no corpo. Ao buscar na história da arte os elementos, conceitos e as experiências que contextualizam sua prática artística, elabora um projeto ambicioso que sonda e manipula as sobras de uma civilização forjada no ferro e nas forças de opressão. Encara o imã não apenas como objeto, mas como uma representação das forças visíveis e invisíveis: as relações humanas, os sistemas de controle sócio-políticos que, em sua trajetória, são revelados por meio de noções muito particulares sobre o magnetismo.
A artista tem a escola vanguardista da cena da performance como raiz de sua jornada. Isso se deu a partir de uma profunda relação com o MAI – Marina Abramović Institute, entidade dedicada ao trabalho de longa duração. Suas ações, portanto, sugerem a inserção do público na experiência estética de exploração do corpo e do risco como forma de expressão artística e de confrontação dos conflitos que perpassam a realidade.
Em sua primeira individual, Paula apresenta um conjunto de trabalhos que aglutina sua experiência, dos últimos vinte anos, junto ao desenvolvimento de ações experimentais nos campos da curadoria e produção. Por meio de registros e documentos de performances – compostos de fotografia, vídeo-arte e obras instalativas – exibe quatro obras que carregam a energia d’um universo mito-poético de urdiduras colossais. Performances que utilizam linguagens em que a tensão e o conflito são materializados numa estrutura coberta por forças palpáveis e abstratas. É esse tipo de campo que Paula denomina “Corpo Ruído”.
Os sons surgem como elementos muito presentes e determinantes, tornando o trabalho robusto. A microfonação, o ajuntamento e escoamento dos ruídos captados se alinham de modo que o material resultante desses processos se constitui como arte sonora. São peças de sons ruidosos adornadas pelo barulho de ferro batendo com ferro; estardalhaços agudos, de difícil digestão, que invadem a epiderme do público num violento rumor de um corpo que pende, que enverga, mas que permanece e respira. Essa sonoridade nasce do atrito entre os materiais com os quais Paula trabalha e que funcionam como corpos que detonam um outro corpo.
A agonia das marcas roxas, dos pontos costurados na carne da artista, levam ao entendimento da exaustão e do descanso como simbologias da inteireza. Estas imagens têm efeito magnético no público. Pelo seu contrário, também apresenta-se o impacto nos momentos de descanso e nutrição: a água, o alimento, o suor lavado, tudo ganha outra compreensão e nos leva a uma imaginação que faz severas críticas à arte que não se inclina ao risco. Tudo isso revela a centralidade de estados alterados de consciência na performance, uma vez que, a partir dessa condição, Paula consegue desafiar os limites carnais e criar “obras de transe”.
A intensidade do trabalho é fundamentada na presença, uma presença radicalizada em atenção total no agora. Por isso, sua atenção se volta às experiências brutais de trabalho em que, por horas e horas, exige dedicação do corpo ao ofício, isso a leva a fazer uso da própria matéria humana como sujeito e objeto, tema e meio de expressão.
A coisa bruta, o peso, o uso da força traduzem a performance em algo que seja plástico. É quando os esforços da artista ganham ares mais ambiciosos e desembocam em projetos audaciosos, complexos em verba e realização como Cru/Raw, configurando um momento de maturação. Por isso, talvez a característica mais significativa de seu trabalho seja o fato de elaborar com e no limite. Em vários exemplos nota-se a tentativa persistente de lidar com aquilo que se localiza no extremo: a dor, o corpo, os equipamentos, o experimentalismo e até a própria arte. É uma ação contínua que visa o êxtase pela extrapolação dos limites. Nesse caminho, Paula debate as construções do gênero, da força humana, das políticas internas e externas.
Ela nos diz, a todo instante, que o corpo age como ferramenta política de descentralização da noção estável que temos da corporeidade. Nos mostra que a voz vinda dele combinada com os ferros dentro do espaço, é o ruído. O tempo se torna um elemento central, com a artista muitas vezes desafiando as percepções convencionais de duração e ritmo. Isso resulta em uma experiência meditativa e ativa tanto para Paula quanto para o público, e questiona as normas estabelecidas sobre a arte e a experiência estética.
Nesse contexto, aponta para uma corporalidade radical definida pela interseção de ao menos três fatores: precariedade, incerteza e risco. Seja na obra Cru/Raw ou nas obras que compõem a série Corpo Ruído, a artista parece querer realizar o impossível e romper limites, buscando equilíbrio em instantes de instabilidade extrema. De modo sensorial, a relação entre perigo e alteração dos sentidos, tão ambivalente, por um lado nos mostra que toda e qualquer situação que exija dos sentidos e do corpo, algo que fuja de suas atividades ordinárias, será necessariamente experimentada como arriscada e perigosa. Por outro lado, Paula Garcia nos mostra que a exposição ao abismo é algo que impele o corpo a utilizar os seus sentidos de uma forma não cotidiana, rumando ao campo do extraordinário.
– Natalia Grilo
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