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“Cenizas de Mañana” de Matias Duville na Casa Triângulo
10 agosto - 10:00 - 19 setembro - 19:00
Casa Triângulo apresenta a primeira exposição individual de Matías Duville na galeria, com texto crítico de Jacopo Crivelli Visconti.
O corpo da mulher (ou talvez seja um homem, o próprio Matias Duville não sabe dizer) que, sentada sobre as montanhas, observa a esparsa procissão de barcos que se aproximam dela, é “atravessado pela paisagem”[1]. As figuras humanas são quase completamente ausentes do universo do artista argentino, e é significativo que quando aparecem, como em Ciencia Folk (2024), elas estejam “em outro plano, não exatamente lá”. O aspecto mais curioso dessa ausência é que na maioria das obras de Duville, sejam elas pinturas, desenhos ou instalações, a paisagem é deserta, mas os rastos da passagem e da ação humana estão por todas parte: árvores cortadas, objetos em desuso, arquiteturas obsolescentes, tudo indica que alguém esteve lá e participou ativamente da construção do cenário que agora podemos observar. O lugar do artista também é o de alguém que acabou de chegar, que observa as coisas e as descreve. A primeira impressão, ao se deparar com essas paisagens, é que o artista está representando, com o objetivo de criar uma crítica contundente e ineludível a partir de uma perspectiva ecológica, um mundo pós-apocalíptico, em que as piores previsões (todas elas, diga-se de passagem, a cada dia mais plausíveis) se tornaram realidade. Mas a relação do próprio artista com o universo que, há quase trinta anos, vem representando, é mais complexa, e certamente “não se reduz à vontade de representar o que está acontecendo com o planeta”.
Apesar das mudanças estilísticas e da predileção, em fases distintas da sua trajetória, pelo desenho, a instalação ou a pintura, pode-se dizer que a paisagem que aparece em suas obras é a mesma. É como se o observador se deparasse, ao longo dos anos, com “frames de um filme que retrata essa paisagem”. Nenhuma das pinturas, nesse sentido, pode ser considerada totalmente isolada das outras, e muito menos pode-se assumir que qualquer uma das obras na exposição ou, numa escala maior, na produção de Duville como um todo, dê conta de retratar essa paisagem. O que vemos é o que o artista está vendo naquele momento, o que a câmera da sua mente observa. São fragmentos, flashes de um “espaço infinito, quase como o fundo de uma mente, algo inabarcável”. O tamanho do desafio de reproduzir um mundo se reflete na escala dos trabalhos. Se não é insólito, no panorama da produção artística contemporânea, ver instalações e pinturas de grandes dimensões, é mais raro ver desenhos da escala frequentemente adotada por Duville. O artista considera o desenho um meio mais físico do que a pintura: “o desenho tem muito a mão”, ele diz, enquanto “a pintura é mais fluida”. Talvez seja exatamente essa fluidez que faz com que as obras reunidas nesta exposição vibrem de um jeito muito distinto da maioria dos desenhos, quase sempre realizados em tons de vermelho ou de preto. Por outro lado, essa mesma fluidez faz com que as pinturas sejam menos físicas do que os desenhos. E essa falta de fisicalidade seja talvez o que faz surgir os golpes, as marcas de batidas na superfície da pintura que conferem “mão” aos trabalhos e fazem dessas pinturas trabalhos eminentemente duvillianos, no sentido que não apenas trazem a representação de um mundo que já nos é familiar, mas também a angústia de uma violência latente, ineludível.
Quando começa um novo trabalho, o artista raramente realiza estudos ou esboços preparatórios. O mais comum é partir de uma ideia, de um mote quase narrativo, ou literário até, “uma ponte que se derrete, uma onda congelada, um clima ao mesmo tempo frio e tropical…”. A partir disso, a cena vai surgindo sem que seu autor saiba exatamente como ou tenha um controle total sobre o que acontece. Se, no caso das instalações, a presença de materiais como o ferro ou o asfalto traz uma familiaridade que a obra precisa subverter, nas obras bidimensionais o observador fica completamente imerso nesse universo paralelo. Tudo é profundamente distinto do que conhecemos, e ao mesmo tempo intimamente familiar. Até o artista se pergunta, às vezes, “onde será que é isso? Eu gosto de não me reconhecer, de não saber quem fez isso. Quando tento planejar o que vou fazer, geralmente acabo não gostando do resultado”. Apesar de ter desenvolvido, ao longo dos anos, métodos e estratégias de trabalho, como introduzir “um montinho de pedras, umas árvores” ou outros elementos que o ajudem a “avançar sobre o terreno”, o artista se mantém numa posição indefinida, de alguém que consegue ser ao mesmo tempo criador e observador: “estou explorando esse ambiente junto com o observador, não tenho um controle sobre ele”. A ideia de uma exploração conjunta de um território desconhecido nos afasta mais ainda da visão reducionista do trabalho como uma crítica aos efeitos do antropoceno. Pelo contrário, a sensação é que não haja um juízo de valor unívoco: eventos catastróficos para uma civilização ou um ecossistema específicos podem não ter a menor relevância ou ser até benéficos para inúmeros outros. Estamos apenas começando a explorar o universo peculiar de Matias Duville, ainda não dá para sabermos o que é bom e o que não é, o que se desenrolou como poderíamos desejar e o que seguiu outras lógicas, a partir de decisões e arbítrios sobre os quais não temos controle algum. Por enquanto, observamos. Pode ser que em algum momento as coisas fiquem mais claras, mas também pode ser que não.